Sobre o fim da Embraer, resposta a um amigo.
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Caríssimo, você não faz ideia de quanto eu torço para estar errado…
Mas, lendo algumas matérias aqui e ali, fica a pergunta: deixando o nacionalismo anacrônico e reacionário de lado, a prefeitura de São José dos Campos ou o Governo do Estado ou o Federal encomendaram algum estudo de impacto econômico para verificar as consequências da perda do comando da Embraer e as consequentes alterações decorrentes em curto e médio prazo nas bases produtivas da região?
O governo federal não deve ter feito pois o anterior tinha pressa na desnacionalização e o atual não é afeito a estudos e planos. O Governo do Estado acho que também não fez pois neste período estava ocupado fechando o CEPAM e a EMPLASA. A Câmara, a Prefeitura Municipal, não sei. Tem bons técnicos lá, conheço alguns. E tem uma associação de engenheiros e arquitetos que era ativa, deve ter uma OAB. Será que fizeram?
Pergunta-se, se não fizeram antes, alguém vai fazer agora? Ou a ideia é sentar na varanda e esperar o mato crescer?
O que se tem visto mundo afora em casos semelhantes ao da venda da Embraer é que a retirada das fases de inteligência e comando da cadeia produtiva, mesmo que haja a manutenção de operações de montagem, deixa de oxigenar a economia, deixa de garantir o desenvolvimento local e regional e rompe com a estrutura de geração de riqueza sistêmica, justamente pela falta de agregação de valor.
Ou seja, ficam os empregos menores e médios, que são os que exigem menor preparação, oferecem menor massa salarial e são os mais suscetíveis à substituição pela automação. Deste modo, mesmo que haja a manutenção inicial de uma certa quantidade de empregos, a menor exigência de qualificação e o menor poder aquisitivo, a médio e longo prazo significarão um consumo menor e menos qualificado de bens e serviços no entorno, com consequências irrecuperáveis para a economia da região. É uma bomba de efeito cascata e retardado. O que, numa economia de ciclos cada vez mais curtos e diante da indústria 4.0, que é fundamentalmente inteligência e comando, nem é tão retardado assim.
Isto sem falar que as plantas que contam apenas com atividades de montagem, sem as etapas de inteligência e comando do processo, que compõem os seus caminhos críticos, são passíveis de fechamento sem nenhuma dificuldade e com grade velocidade.
Vejamos o caso de São Bernardo do Campo e região do ABC paulista, que um dia chegou a ser, ela, a princesa tecnológica do estado. Cidade e região contavam com sistema de ensino de qualidade, alto padrão de consumo de bens e serviços além de centros de excelência como o SENAI, FEI e Instituto Mauá de Tecnologia. Estúdios de design e uma vastíssima rede de indústrias e prestadores de serviços auxiliares especializados.
O que se tem ali, hoje, é uma situação de penúria que se deve ao fato de que cidade e região não souberam se preparar para a perda do parque industrial alavancado pelas montadoras. Não se prepararam, especificamente, para a perda da inteligência e do comando do processo produtivo, que é exatamente o que acaba de acontecer com São José dos Campos e região com o fim da Embraer.
O que se vê no ABC hoje, com o constrangedor e emblemático episódio Ford GM? Se vê a diretoria da GM, a partir dos EUA, pressionando o governo brasileiro, o liberal governo do estado pagando caríssimo, com dinheiro público, para a própria GM não ir embora e para uma montadora chinesa comprar a fábrica fantasma da Ford que foi assim mesmo. Insisto, tudo pago por nós pois a cadeia produtiva local simplesmente quebrou. Não é um caso isolado. O mesmo já se viu em Liverpool há décadas e depois, mais dramaticamente ainda, em Detroit e em várias outras cidades espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.
No caso de São José dos Campos, se abriu mão do projeto do caça, cujo futuro está agora ameaçado, e foi entregue o projeto do cargueiro. 49% da nova companhia que vai fabricá-lo é da Boeing e a maior parte de suas ações será negociada em NY. Não bastasse, acrescente-se o detalhe de que toda empresa norte americana ou que use tecnologia ou conhecimento norte americano só pode comercializar seus produtos total ou parcialmente com a aprovação do Departamento de Estado e do Departamento de Comércio dos EUA, que tem poder indiscriminado de veto das operações. Ou seja, o comando está fora. O planejamento estratégico e a prospecção e desenvolvimento de mercados obedecerá a interesses não mais locais ou nacionais.
Só um exemplo… Se e quando todo o desenvolvimento de aviônica, ou boa parte dele, for para EUA e Inglaterra, por exemplo, o que acontecerá com centenas de micro, pequenas e médias empresas de eletrônica da região? E o que acontecerá com os empregos que estas empresas geram, cuja massa salarial mais alta em função dos valores agregados na cadeia produtiva sustenta um mercado de consumo que pode ter bons médicos, bons dentistas, bons advogados, bons arquitetos… que sustenta bons restaurantes, livrarias, escolas, universidades, boas cadeias de comércio. Vai dar para manter tudo isso, toda esta riqueza, só vendendo Tucanos, que foi o que restou da Embraer?
Ademais, é possível desvincular a venda da Embraer da cessão da base de lançamentos de Alcântara, da praticamente extinção do programa aero espacial brasileiro, da intervenção político-partidária no INPE e de mais uma paralisação do projeto do submarino nuclear?
Mas, retornando ao início. Onde estão os estudos de impacto realizados antes da venda da companhia com análise dos vários cenários e as providências preventivas seja no contrato de venda (como fizeram ingleses e australianos com a Boeing e canadenses e chineses com a Air Bus), seja no poder público e na iniciativa privada local?
É todo mundo passageiro e confiante na boa vontade e na bondade dos novos patrões, é isso?
Apesar de não ser pessoalmente afetado pela questão, como gosto de aviação e gosto dos produtos e da história da Boeing Brasil, fico preocupado com o que virá.
Mas, insisto, espero estar errado e apenas ferido em minha brasilidade. Pois, seja como for, não dá para não perceber que este episódio simboliza e confirma a ideia de que o Brasil não merece e não tem mais competência para ter uma indústria aeronáutica de ponta.
Valter Caldana