Como procuro sempre alertar, observar a cidade e estudar arquitetura e urbanismo são ações multidisciplinares.
Se pode verificar a comprovação disto no caso da recente alteração do marco regulatório do desenvolvimento urbano paulistano, em especial do Plano Diretor e do Zoneamento…
O significado de palavras simples, prosaicas e corriqueiras como desenvolvimento, qualidade, ambiente, regulação, está completamente alterado.
Aliás, o próprio significado de alteração se alterou, ao lado do significado de revisão. O que a Lei determinava era que fosse feita uma revisão que faria alterações pontuais no Plano e no Zoneamento. Explicar o que estivesse mal explicado, mal escrito, corrigir o que não estivesse funcionando e melhorar, se possível, o que ia bem.
Simples. Aliás, outro conceito muito modificado ultimamente.
O que se fez foi, ao contrário, um Plano Novo e um Zoneamento novo a partir de alterações que se tornaram modificações estruturais nas Leis.
Nunca ficou tão claro que uma sociedade que fez a opção pela ignorância e abandonou há tempos a possibilidade de trabalhar com conceitos para trabalhar com noções tenha assumido desabridamente trabalhar com versões. Quando não, boatos.
O mais emblemático, me parece, por ser caricatural, é a mudança do significado de invasão.
A classe média urbana que mora nos bairros consolidados e superequipados da cidade situados no entre rios, ou seja, na cidade em que se pode ganhar muito dinheiro muito rápido com operações imobiliárias, descobriu que foi invadida e violentada em sua intimidade.
E que isso não se deu pelos fantasmas que a atormentavam, mas por quem ela julgava serem seus iguais. Descobriu que não eram. Foi traída. Por eles? Talvez por si mesma e por nunca ter prestado muita atenção no significado de invasão, de ocupação, de moradia, de habitação…
Mas, a marca fundamental deste marco é a contradição. É o que o marca e caracteriza.
Por exemplo, temos pessoas que moram em prédios de 18 ou 20 andares querendo limitar a construção de prédios ao seu redor a 12 andares. Temos lojistas bravos porque vão colocar mais consumidores no entorno de suas lojas. E temos cidadãos e cidadãs irritados porque não estão entendendo nada do que de fato nunca entenderam. Mas sempre se serviram.
Outra contradição interessante é que se discute o essencial com instrumentos acessórios.
Por exemplo, desde que se movimentou para adiar a revisão do PDE o grupo que se sente mais violado pelo resultado do processo só perdeu espaço. Espaço político, espaço econômico, espaço cultural e social, espaço espacial, tangível e material. Talvez ganhe um vereador. Ou duas. Tomara!!! Mas não passa disso.
Apostou todas as suas fichas num processo participativo formal e muito pouco consequente (uma vez que é formal), que abriu as portas para que se ganhasse ainda mais tempo para transformar a revisão para alteração em revisão para mudança, eliminação e substituição.
E, mesmo assim, diante do fato consumado vai à justiça pedir o quê? Mais audiências públicas ao invés de pedir, por exemplo, dados e evidências quanto às possibilidades e consequências da implantação destas modificações. Audiência feitas, tudo resolvido… Plano e Zoneamento novos aprovados. Era isso? Será?
Mas e a cidade?
Se esquerda e direita votaram a favor dos novos PDE e LPUOS, se o resultado da votação foi esmagador, 46 x 9, o que está tão errado?
O que está completamente errado é que se fez mais uma vez uma colcha de retalhos que atendeu a interesses corporativos específicos.
Ganharam, e muito, os mercados imobiliários. Sobretudo o mais voraz, ligado à rapinagem do capital internacional volátil.
Ganharam, um pouco, bem pouco diante de suas necessidades, mas o suficiente para darem seus votos, os movimentos por moradia que terão algumas reivindicações antigas atendidas.
Ganharam, também parcialmente, cidadãos vítimas da ação de grupos criminosos que parcelaram durante décadas a cidade ao arrepio da lei, em especial em torno das represas.
Ganharam as igrejas e ganhou o grande comércio. Já o pequeno, o que faz a animação da cidade, não ganhou. Acho até que perdeu um pouquinho.
Ganharam os moradores de ZER, que até onde entendi continuam ‘imexíveis’ menos nos corredores (problema tão antigo quanto o zoneamento, de 1972)
E ganharam, e muito, os políticos, em especial os vereadores. Isto se pode ver, por exemplo no caso do patrimônio.
Ao eliminar o Conpresp e assumir na prática suas funções, deram mostras de que já aprenderam a importância do patrimônio para a cidade. E demonstraram que todos os pequenos atentados que cometem e cometerão contra ele daqui para frente não são fruto de ignorância ou despreparo.
E, com todas estas vitórias, quem perdeu então?
Antes de mais nada, de imediato e no curtíssimo prazo perdeu quem tem 9 votos em 55.
No curto e médio prazos, perdeu a cidade. Perdemos todos, inclusive os vitoriosos da ocasião.
Isto ocorre porque estas vitórias corporativas não são equilibradas, não são proporcionais nem complementares entre si e não formam uma unidade. Não compõem um projeto para a cidade de onde se possa elaborar e implantar políticas públicas e instrumentos coerentes e eficazes.
Ao contrário, reafirmam o fato de que o projeto é não ter projeto e, então, colocar a “culpa” pelo colapso da cidade numa difusa ideia de que “a cidade cresceu desordenadamente”. Hahaha.
Porém, é preciso entender que neste processo a maior perda é também a maior vitória.
Fazer um zoneamento novo que é velho, que reafirma o atraso e o anacronismo, que mantém intactas as causas mais simples e elementares dos desastres paulistanos, como a desigualdade, por exemplo, interessa. Ou não teria 46 votos.
Perder, mais uma vez, como tantas vezes nos últimos cinquenta anos a oportunidade de evoluir, que congela a cidade afogada seus piores defeitos e provoca as maiores agruras em sua economia e em sua população interessa. Ou não seriam 46 votos favoráveis.
Discutir altura de prédio sem discutir o que se passa no chão, interessa. Discutir uso do solo lote a lote numa cidade que vai dar 1.000.000.000 um BILHÃO de DÓLARES em um ano para um sistema de transporte como o nosso sem ligar as duas coisas, uso e transporte, interessa. Ou não teria uma vitória esmagadora.
Modificar o zoneamento e o plano, sabendo que vão ser mudados, de novo, em pouco mais de cinco anos foi uma opção majoritária da sociedade. Que prefere o ganho imediato ao custo da riqueza futura.
Esta é a grande vitória, o ganho imediato.
Porém, é também a grande derrota, transtemporal e coletiva. Se confirma e se consolida mais uma vez, o conjunto de conceitos e instrumentos que mantém intactas as grandes contradições que geram a baixa da qualidade de vida na cidade.
Derrota coletiva, mas sobretudo para quem quer uma cidade estruturalmente contemporânea e competitiva que é, no entanto, vitória para quem tem voracidade e meios de explorá-la, de exercitar o extrativismo como política e instrumento de ação. E que ganha muito com isso.
Por isso, entre invasões, ocupações, violações, expulsões, participações e fortes emoções o que se tem são pessoas cada vez mais mal servidas e com qualidade de vida pior.
O resto, bem, o resto é semântica.
Valter Caldana