A ÚLTIMA QUE MORRE

Um amigo me escreveu perguntando por que eu fiquei tão desolado com a perda do Campo de Marte se a cidade vai ficar sem a dívida.
Simplificando muito, é porque cidade não se faz apenas com dinheiro, principalmente se for dinheiro vindo de venda de patrimônio e sem destino certo, sem projeto para aplicar. Só plano.
Fiquei desesperançado porque aquela área, incluindo Anhembi e Sambódromo é a maior reserva de terra pública que a cidade possuía (quase, a guerra de 90 anos estava ganha!) para crescer para dentro, mais viável e barato, e não para fora, mais caro e hoje inviável, como vem fazendo há um século.
A cidade perdeu, nos últimos anos, no vale do Tietê, praticamente todas as oportunidades de construir-se adequadamente, de acordo com as suas necessidades atuais e futuras, dentro de parâmetros que hoje norteiam a construção das cidades mais importantes do mundo, grupo em que São Paulo esteve e ao qual vai deixando de pertencer.
Nossa origem, nosso presente e nosso futuro estão completamente atrelados ao trecho urbano do vale do Tietê. Ele foi fundamental para sermos o que somos, e é ainda mais fundamental para sermos o que seremos.
Nos últimos 25 anos, ao perder as oportunidades de avançar e, pior, agindo para estragar de vez o que já havia construído, a cidade abre mão de seu futuro.
Sequer vou apelar para coisas ainda anteriores como a questão do saneamento (solução integrada x sanegran) ou para questões mais sofisticadas e distantes, como uma cidade ambientalmente sustentável, inclusiva e blá, blá, blá…
Vamos só aos erros e desmazelos mais recentes, do tipo incompetência mesmo, destas que rasgam dinheiro, fazem um montinho e queimam tudo, que é para não poder aproveitar nada, nada mesmo…
> despoluição das águas que teve bilhões investidos e não foi feita;
> ampliação e alargamento das pistas de alta velocidade privilegiando pneus e destruindo qualquer possibilidade de urbanização das áreas lindeiras;
> travessias idem (viadutos), mal colocadas e que só servem ao fluxo de veículos, destruindo as áreas urbanizáveis e exploráveis economicamente de seu entorno e impedindo definitivamente a ligação/interação urbana entre as duas margens;
> desassoreamento incompleto da calha do rio;
> zoneamento lindeiro desconsiderando o potencial econômico sistêmico da região no que tange ao valor da terra e ao uso do solo, completamente desperdiçado;
> venda da gleba Pompeia e arredores para um uso e ocupação convencional e que desperdiça potencial construtivo urbano;
> operação urbana Água Branca desastrada e inconclusa;
> pantomima e venda do terreno do complexo Anhembi;
> pantomima e confusão generalizada no trato do terreno do ceagesp e arredores (tietê x pinheiros);
> projeto de um arco que de tão grande não se consegue ver o foco;
> desperdício completo das áreas da ferrovia no e sob o cebolão (melhor nem falar, pois com a futura privatização da rede e da sabesp os terrenos vão embora junto);
> abandono dos planos de incremento do uso dos transportes sobre trilho nas margens e nos bairros lindeiros;
> e, agora, a capitulação numa guerra que se arrasta há noventa anos e que estava ganha.
Que fique claro que cidade se faz com teorias, com crítica, com ideologia, com economias, com política, com participação, com conflitos, com encontros, com acordos e desacordos, com amores e paixões. Sim, com tudo isso.
Mas, mesmo com tudo isso, é bom ficar atento pois
CIDADE SE FAZ COM TERRA!! Sem terra não há cidade.
E São Paulo está se desfazendo de forma irreversível de toda sua terra, de sua possibilidade de fazer cidade, seja ela qual for, para quem for, no futuro próximo.
Por isso a tristeza provocada pela renúncia a 2.000.000 dois milhões de metros quadrados, fora os cones de aproximação (triplica esta área), bem no centro geométrico da região metropolitana, ao lado do centro da cidade e em frente ao rio Tietê.
A cidade vai morrer por isso?
Não, claro que não.
Vai apenas ser pior, bem pior.
E mais cara, bem mais cara.

Valter Caldana

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