Texto de Antônio Risério sobre Lelé

Breve nota sobre Lelé

Antônio Risério

Tenho mais o que fazer do que andar em círculo estreito com um repetitivo, burocrático, defasado e autoritário Emiliano José. Logo, au revoir, meu caro. Espero que, até lá, você consiga revoir la lumière. E entenda que “ter projeto político” não é sacrificar a independência intelectual para apoiar as “verdades” do PT. Passo então a outros papos, aproveitando a montagem de uma exposição da obra do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, no TCA. É mais ou menos a exposição que passou por São Paulo e está acontecendo também na Holanda.
Lelé, longe de qualquer dúvida, é uma das grandes personalidades da história da criação urbanístico-arquitetônica em nosso país (com “p” minúsculo, revisor: não sigo manualzinho de redação de jornal que diz que, quando o país é o nosso, o “p” tem de ser maiúsculo – não tem). Pertence ao time do velho Frei Macário de São João (o arquiteto de nossa Câmara Municipal), do Aleijadinho, de Lúcio Costa, Niemeyer, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e uns poucos mais.

Costumo dizer que, para compreender com clareza a sua trajetória, o sentido de suas intervenções, devemos ter sempre em mente as três características centrais de sua personalidade arquitetônica. O tripé sobre o qual se assenta sua criação arquitetural. Primeiro: o profundo e rigoroso conhecimento do seu ofício. Nas dimensões teórica e prática. Lelé conhece como poucos os campos ocidental e extraocidental da arquitetura e tem uma intimidade rara com a produção moderna e contemporânea. Na prática, no plano mesmo do saber fazer, Lelé tem uma intimidade total com as minúcias do construir. Chegou a construir sozinho uma casa em Brasília, na década de 1960.

Segundo: o empenho total no campo da inovação e da pesquisa, da pré-fabricação centralizada na tecnologia da argamassa armada, sem nunca esquecer a história e a beleza. Articulando todas essas coisas – conhecimento e pesquisa, informação e prática, signos e fazeres -, vamos encontrar a terceira ponta do tripé, fundamental: consciência e sensibilidade social e ecológica. Lelé ressalta com clareza os vínculos essenciais (e necessários) da arquitetura com a sociologia e a antropologia. E é um ecologista das antigas, de muito antes do ambientalismo se espraiar e virar moda.

No primeiro caso, Lelé jamais concebe a arquitetura como algo distante, e muito menos divorciado, do pensamento social e das configurações histórico-culturais. É possível ver isso claramente tanto em suas ações quanto em suas reflexões. Por exemplo: não é por acaso que sublinha, na arquitetura de Arne Jacobsen, a consideração do horizonte cultural finlandês. Que, para projetar a enfermaria do hospital Sara, medita sobre os espaços do prédio de nossa Santa Casa de Misericórdia. A própria escolha tecnológica de Lelé, trabalhando com a argamassa armada, passa pelo critério social. É uma tecnologia que gera emprego. Não por acaso, Lelé se fez nosso grande arquiteto público. Assediado por empresas como a Camargo Corrêa, se recusou a virar projetista de apartamentos particulares. Construiu sua obra publicamente, com edificações voltadas para funções e usos coletivos.

No segundo caso, a dimensão ambiental deve ser sublinhada em qualquer apreciação da criação de Lelé. O environment é uma determinação objetiva e essencial do que ele faz: uma arquitetura simultaneamente ecológica, tecnológica e convivial. Nos hospitais que constrói, uma arquitetura que é uma lição para a própria medicina tecnificada de nossos dias. Indo além, Lelé responsabiliza a construção civil por boa parte da destruição de nossa Mata Atlântica. Faz a celebração das brisas brasileiras, observando que nossas construções não devem se orientar pela trajetória do sol, mas pelos caminhos do vento.

E condena, por tudo isso, o emprego da madeira em edificações. O emprego presente – porque ainda não chegou o dia em que a arquitetura brasileira, vivendo num país que conheça regras florestais e lide sistematicamente com madeiras controladas, possa usar madeiras com a consciência tranquila.

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