Vendo o noticiário sobre mais um mega deslizamento no litoral norte, devo fazer um enorme esforço para não publicar um post cheio de obviedades, falando o que todos sabem e muitos já escreveram aqui e alhures nos últimos dias.
Porém, o foco da tragédia na Vila Sahy me deixa particularmente tocado pois conheci várias pessoas por lá, durante um projeto de que participei em 2016.
Por isso me sinto compelido a fazer alguns comentários e contar algumas histórias deste projeto muito especial de nosso laboratório (LPP – laboratório de projetos e políticas públicas da FAUMACK) elaborado em parceria com a Escola de Marne la Valée (Mangin David Remi Ferrand França) e a UGP/CDHU (
Eduardo Trani e
Fernando Chucre) do governo do Estado.
Lá pudemos fazer (usando técnicas participativas e colaborativas) um plano de bairro e projeto local para o Sahy, com foco na Vila Sahy que fica entre a estrada e a serra e onde vidas e patrimônio se perderam nos últimos dias.
Este projeto, um pequeno ponto parte integrante de um projeto muito maior, de grande profundidade e alcance chamado, não por acaso, Projeto Serra do Mar, do governo do estado de São Paulo, teve como foco propor soluções para coibir, de modo ativo e não apenas repressivo, a ocupação excessiva e irregular da serra nas áreas já tombadas e nas áreas de risco lindeiras à cota limite.
A Vila Sahy foi a escolhida pela equipe como uma espécie de piloto, justamente por suas características peculiares. Reunia todas as características espalhadas pelos quase 200 km de ocupação similar que encontramos ali entre Bertioga e Ubatuba.
Não vou entrar aqui em detalhes do projeto, não é hora nem lugar, mas cito três pontos estruturadores da proposta que fizemos.
. Aumentar a mobilidade entre os centros consolidados e os municípios da sub-região através da implantação de sistema de transporte público de média capacidade interligando as cidades.
Elevando a mobilidade, se consegue diminuir a atratividade dos condomínio de turismo e classe média alta que se situam na faixa entre a estrada e o mar.
. Criar sub centros de comércio e prestação de serviço possibilitando a criação de emprego e renda, além de promover uma intensa mobilidade transversal ao eixo da rodovia, interligando as áreas de modo a diminuir a segregação e facilitar a mobilidade de pessoas, bens, serviços e águas.
. Especificamente no Sahy a proposta contemplava, ainda, em 2016, a criação de lagoa de contenção, direcionamento e controle de vazão das águas, a remoção de aproximadamente 160 famílias (podendo chegar a 210) que se encontravam, já naquela época, em área de risco, e a implantação de dois condomínios residenciais para a transferência destas famílias que teriam suas casas removidas.
Todos sabemos das fragilidades geológicas da região. Sabemos da ocupação inadequada, sabemos dos efeitos perniciosos e deletérios do patrimonialismo e da mercantilização excessiva da natureza e da terra, do descuido geral, em especial privado, com as condições de desenvolvimento urbano e ocupação daquela faixa do litoral.
Todos sabemos da tragédia de 1966, e todos sabemos que não fora o heroico tombamento da serra do mar nos anos 1980 a situação seria ainda pior.
Arrisco dizer, também, que não fosse este projeto Serra do Mar, que já produziu efeitos importantes na região da baixada santista, tudo poderia ser ainda pior.
Claro, por fim, cabe entender que a quantidade de chuva concentrada foi totalmente atípica e isto explica parte de todo o ocorrido.
Dito isto, além de externar minha tristeza pelo ocorrido e minha preocupação com as pessoas que conheci durante o projeto e que espero que estejam bem e seguras, quero aqui fazer um alerta para a necessidade de que se mude a maneira como determinadas prioridades e políticas públicas são encaradas pela sociedade.
Num país, sobretudo em suas classes médias urbanas, que tem se jactado de ser Liberal, chamam a atenção as reações diante de cada nova tragédia cobrando ação “do governo”.
Sim, o governo tem que agir. Mas, as decisões de ação “do governo” não são autóctones. Não são isoladas. Não são mais fruto de uma casta iluminada de tecnocratas, como fora em outros tempos.
Ao contrário, as ações “do governo” são frutos de movimentações da sociedade e de suas pressões, legítimas ou não. O governo mais do que age, reage. Isto é a Política.
Recentemente comentei aqui que o governo do estado havia gasto, a meu ver de modo equivocado, centenas de milhões de reais na duplicação da Tamoios.
Não gastou porque quis. Gastou por ser um entendimento da sociedade de que valia a pena gastar. Fomentou o turismo, aumentou a acessibilidade da classe média do interior do estado e da capital ao seu lazer de verão, beneficiou a indústria petroleira e petrolífera e de quebra a automobilística.
Numa tacada só, a este custo não módico, incrementou o uso e a ocupação da fixa litorânea com nenhuma ou pouquíssima ação mitigadora preventiva. Nenhum centavo em sistemas capazes de filtrar e amortecer todo o aumento de atividade, sobretudo imobiliária, no litoral…
Mais do que isso, a sociedade/poder econômico e político que pressiona por um projeto como o da duplicação da Tamoios, é a mesma que não investe um centavo sequer em pesquisa e desenvolvimento, é a mesma que faz projetos de loteamentos e condomínios praticamente do mesmo modo há cinquenta anos, é a mesma que não criou, neste meio século, um fundo (milionário) para o financiamento sustentável do desenvolvimento local, que não contratou projetos específicos para a ocupação de “suas” terras.
Enfim, chateado, já escrevi demais e desta vez ficou bem confuso o texto. Mas, tudo isso para dizer que, sim, o governo tinha que ter feito. Mas, mesmo quando faz, não adianta.
E para dizer que ou os liberais nacionais aprendem que liberal que é liberal gasta dinheiro, o seu dinheiro, ou esta história está ficando bem cansativa. Não dá para ser liberal usando só o dinheiro público e esperando os efeitos da ação.
Ah, e antes que chovam comentários falando da carga tributária, sugiro que realmente se verifique esta carga nos países desenvolvidos e neles a quantidade de dinheiro investido pela iniciativa privada em ações de médio e longo prazo de benefício público.
A chuva, todo janeiro, fevereiro e março, vem. Ela é uma realidade, e o que fazer com ela é uma opção.
…………
A maravilhosa aventura humana.
Valter Caldana
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