A dialética, o martelo e o dedo

wolinski

Aos amigos que estão encantados com as análises do “eu não sou Charlie”, feitas inclusive por teólogos que respeito muito, [leia aqui] lanço uma pequena, ainda que longa, provocação.

A dialética foi resgata e alçada a protagonista na construção de análises (da história em conjunto com o materialismo histórico, e de conjuntura, em conjunto com o estruturalismo) para nos permitir um enorme salto qualitativo e civilizatório, de resto ainda não compreendido por todos, vide o próprio caso (e o processo) que estamos repercutindo e comentando.

No entanto, como qualquer ferramenta, ela precisa de destreza e critério de utilização. Como qualquer martelo, ao usá-lo estamos sujeitos a martelar o dedo.
Para analisar o terrorismo e, menos, bem menos “glamurosos”, quaisquer casos em que há atentados contra a vida, como o latrocínio, o estupro, a violência policial, a violência policial como política de Estado, a violência da guerra, a dialética passa a ser um martelo bastante pesado quando usada sozinha.
Sim, pois nos permite, ao analisar a vítima e seu comportamento, ali encontrar a possibilidade de explicar (ou pior, justificar) a ação do agressor. E esta é uma inversão fatal e assustadora. Uma martelada no dedo. Inclusive por que matamos a vítima duas vezes.

Neste caso, prefiro ver a questão com uma certa simplicidade (positivista, racionalista?).
Concordo com que se mate alguém por algum ou qualquer motivo?
Não, não concordo. Esta é uma questão preliminar, axiomática.

E aí, seja quem for a vítima, dos geniais cartunistas parisienses aos milhares (já deve estar indo para a casa do milhão) anônimos cidadãos de países árabes absurdamente invadidos sob todos os aspectos pela comunidade internacional ocidental, seja um pai de família da classe média paulistana morto para que se lhe roubem um carro seja um, mais um, jovem negro e pobre da periferia de nossas grandes cidades, eles são vítimas, eles morreram. E morreram por uma ação desproporcional de alguém que os matou.
E é por isso que todos morremos juntos.
É por isso que todos somos Charlie. E é aqui que entra o pesado martelo da dialética.

A partir daí, é só então, vou me servir da dialética, do materialismo histórico e de tantos outros instrumentos para entender o horror da ação e o horror maior, que é o horror da necessidade da ação.
Seus motivos, quais os processos que levaram a este resultado.

O grau de provocação dos cartuns de Charlie Hebdo jamais podem ser elemento de construção da análise, como não pode ser a altura da saia ou o tamanho do decote da blusa da mulher estuprada, assim como não dá mais para justificar o latrocínio pela luta de classes – afinal aquele porco burguês pode ter aquele carrão pois é um privilegiado pelo sistema espoliador – assim como não dá para dizer ao jovem (negro ou não) assassinado pela polícia que ele não deveria morar ali, um local onde estatisticamente jovens negros (ou não) são bandidinhos ou potenciais bandidoes.

Para encerrar, coloco aqui um trecho de mineirinho, de Clarice Lispector, que foi muito marcante em mim.
——————————————————-
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. (Clarice Lispector)

Valter Caldana

This entry was posted in cotidiano and tagged , , , . Bookmark the permalink.

Deixe uma resposta