A Folha traz hoje uma matéria muito boa da jornalista Fernanda Mena sobre a reação de segmentos da sociedade à algumas transformações que vêm ocorrendo na cidade.
Sobre esta questão e outras de mesma natureza tenho me perguntado muito se nosso maior problema é
(i) o estágio histórico em que nos encontramos (outros países, outras sociedades e outras cidades já passaram por estes dilemas há 30, 50 ou mesmo 100 anos atrás), se é
(ii) simples ignorância, no sentido mais generoso da palavra, que pressupõe o desconhecimento que leva o sujeito a adotar uma posição equivocada e prejudicial a si mesmo, se é
(iii) descrença associada ao pavor da transformação, como a daquele animal que passou tanto tempo em cativeiro que se recusa a sair em liberdade pela natureza ou se é,
(iv) simplesmente uma atroz vocação para viver numa latrina…
Eliminando a hipótese (iv) por uma óbvia questão de autoindulgência, fiquemos então num intervalo qualquer entre as hipóteses (i) e (iii).
Por isso, antes de idealizar ou demonizar os aflitos moradores da Vila Leopoldina, condenando-os ao fogo do inferno por sua postura segregadora e preconceituosa ou idealizando-os por estarem colocando a boca no trombone em defesa de seus investimentos e seu projeto de vida ameaçados por uma alteração de rumos da política urbana, que tal qualificar a discussão?
Como? Fazendo propostas alternativas reais.
Organizações sociais de luta por moradia, mercado imobiliário, coletivos, organizações corporativas (CAU, CREAs, IABs, Sindicatos, etc.), poder público, agentes econômicos diversos, o comércio, a indústria, universidades, imprensa, todos dizem ter soluções para a alteração do modelo de desenvolvimento urbano rodoviarista e espraiado, rentista e segregador de São Paulo.
Que mostrem, então, as possibilidades, as alternativas, nacionais, internacionais, pensadas, imaginadas, escritas, desenhadas, declamadas que demonstrem não apenas a possibilidade ou a viabilidade, mas também a necessidade de uma cidade compacta, densa e de uso misto do ponto de vista funcional, programático e, sobretudo, sócio econômico.
Que surjam as alternativas que demonstrem que esta cidade mista, compacta e densa se mostrou, desde o final do século XIX, mais cara de se fazer, porém mais barata para se manter, mais inclusiva, mais justa, mais humana, mais agradável, mais funcional e, inclusive, mais rentável até mesmo do ponto de vista da valorização dos imóveis individuais, em todos os lugares onde foi adotada – de New York ou Boston a Londres ou Amsterdam.
Mas que se faça isso com os olhos na dura realidade cotidiana de um país onde a segregação e o preconceito estão desenhados em suas cidades, porém tatuados em sua estrutura social.
O fato é que ninguém mostra! E quando mostra, minimamente, acaba por demonstrar uma enorme dificuldade de sair de seu próprio território, de seu quinhão de interesse, muitas vezes se dando por satisfeito com o atendimento mínimo de suas reivindicações setoriais/corporativas básicas e a manutenção de seu status quo.
Assim tem sido desde a discussão do Plano Diretor e será mais ainda nesta discussão do Zoneamento. O lema é: “atendeu o meu, então valeu!”, pouco importando as consequências para a cidade de todos, um conceito ainda longe de ser incorporado ao cotidiano do brasileiro, acostumado com a ideia de que o que é de todos é de ninguém.
Deste modo, considerando o modelo de Lei de Zoneamento proposto pela Prefeitura, que mantém os anacronismos básicos da legislação em vigor (que nos colocou neste apagão urbanístico de 40 anos) e reafirma a visão de que a cidade é uma somatória de fragmentos justapostos, é de se esperar que segmentos da sociedade que cresceram acreditando no mito da cidade não planejada se sintam desamparados ou agredidos, confrontados consigo mesmos e com a possibilidade de ver seus projetos de vida se desmoronarem.
O que talvez não saibam é que não correm este risco pela presença de uma vizinhança “indesejável” ou “diferenciada”, mas sim pela convivência com políticas frágeis e projetos de baixíssima qualidade.
Valter Caldana