De novo, mais do mesmo.

Estamos em época de votação da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo na cidade de São Paulo, a poderosa Lei de Zoneamento, definitiva para a construção da qualidade de vida do paulistano e paradigmática para a construção da qualidade de vida urbana de boa parte dos municípios brasileiros.

Mais uma vez corremos o risco de ver isto feito de afogadilho. Comenta-se na Câmara que a primeira votação pode ocorrer até o próximo dia 11 e a segunda já no dia 18. Este hábito, que já está se tornando contumaz, de aprovar modificações na Lei de Zoneamento em horários estranhos ou em períodos onde as atenções e afazeres dos cidadãos estão notoriamente voltados para outras preocupações mais prosaicas, como o Natal, está se tornando grave.

Num processo que foi adequadamente lento em todo o seu percurso não há a menor necessidade de pressa ou desvario no final. Além do quê, aprofundar a análise do substitutivo apresentado pelo legislativo no início de 2016, aproveitando a oportunidade santa de um ano em que o carnaval acontece logo no início de fevereiro é útil, muito útil, para todos os munícipes e todos os agentes produtores da cidade.

Oficialmente, esta é terceira vez em onze anos que se discute e se tenta definir uma nova Lei que organize, sistematize e dê efeitos aos fundamentos do modelo de desenvolvimento urbano da capital: o parcelamento, o uso e a ocupação do solo. A partir de 2004, quando foi aprovada a Lei atual, se tentou em 2006, 2010 e agora.

Este é, de início, o primeiro equívoco deste processo. Fiquemos atentos.

Esta é pelo menos a décima vez que se tenta redefinir este instrumento que emana da esquecida Lei Orgânica do Município e do semi aplicado Estatuto das Cidades, que em conjunto com o Plano Diretor lhe dá operacionalidade. Ou o inviabiliza.

Na verdade, é preciso destacar que temos a mesma Lei de Zoneamento em São Paulo desde 1972. Uma Lei que foi apenas sendo afastada do cidadão, violentada, remendada, adaptada, modificada pontualmente ao sabor de interesses e articulações momentâneas. Mas que mantém sua estrutura, seus conceitos de cidade, seus instrumentos indutores, sua insana tentativa de a tudo regular, lote a lote na cidade.

Trata-se de um modelo de Lei que ao tentar a tudo prever e usar a negação, a proibição e a punição como instrumentos privilegiados de ação do poder público não consegue se tornar eficaz no tocante à encontrar instrumentos ágeis e palatáveis de indução

Vale lembrar também que a Lei de 1972 foi elaborada em complementação ao PDDI – Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, de 1971, que veio substituir o natimorto PUB-Plano Urbanístico Básico encomendado por Faria Lima e que já em 1968 propugnava a alteração da matriz radioconcêntrica de Prestes Maia.

O PDDI, ao contrário, mantém a matriz rodoviarista radioconcêntrica e, ao definir zonas estanques e de baixa densidade e desestimular o uso misto dos lotes nas áreas centrais consolidadas – uma tradição da cidade até então – provoca um enorme processo de encarecimento da terra e espraiamento da mancha urbana, definitivamente dependente do transporte sobre pneus e da distribuição de gás, também sobre pneus.

Assim sendo, como se vê, a redefinição da Lei de Zoneamento não é necessária há onze anos, mas sim há mais de quarenta anos. E estamos de novo com dificuldades em fazê-la.

A primeira tentativa sistemática de entender e alterar o modelo de desenvolvimento urbano da capital pós 1971/72 data do governo Mário Covas, que apresentou um novo Plano Diretor para a cidade (o Plano 1985/2000) elaborado pela então Sempla (hoje SMDU) sob a coordenação do Arq. Jorge Wilheim. Não foram aprovados nem geraram efeito nem o Plano, que dirá uma nova Lei de Zoneamento…

Para chorar sobre o leite derramado, que se registre que ali a cidade perdeu a chance de começar a alterar o modelo de desenvolvimento urbano rodoviarista-espariado-excludente implantado a partir dos anos 1920, reafirmado nos anos 70 e que já dava mostras de colapso.

Não fomos capazes, naquele momento, talvez embalados pela urgência de acabar de vez com a ditadura e de reconstruir o Estado Democrático, de compreender a importância daquela ação e deixamos o barco correr, inclusive nas intermináveis enchentes da capital, ao lado do trânsito e da mobilidade um dos temas mais urgentes relacionados ao parcelamento, uso e ocupação do solo.

Agora, como sentimos todos na pele, pagamos o preço do colapso pleno e, sobretudo, de termos que fazer a discussão e a definição do novo modelo de urbanização da cidade de modo rápido e doloroso, em pouquíssimos anos, enquanto outras cidades do mundo o fizeram paulatinamente, em ao menos duas gerações. Motivo a mais para que não haja precipitação.

Nada do que está ocorrendo no país neste momento é mais grave do que a perda de oportunidade que a cidade de São Paulo está vivenciando. Oportunidade de se organizar para recuperar os trinta anos perdidos na manutenção deste modelo de desenvolvimento urbano e construção da cidade que já não nos serve, segregador, desumano, caro para quem paga e perverso para que usa. Oportunidade de se organizar para enfrentar os desafios das grandes metrópoles produtivas do século XXI, enfrentamento necessário para que consiga se manter entre elas.

Ao optarmos pela mediocridade, pela mesquinharia, pela fragilidade da manutenção de privilégios que já acabaram faz tempo, pelo individualismo como ponto de partida das análises, pela manutenção de uma zona de conforto que de há muito não existe mais, e por uma discussão cheia de entrelinhas e subentendidos…

Ao optarmos, mais uma vez, por uma visão de curto e curtíssimo prazo, invertendo deliberadamente as escalas e as prioridades de ação, pressupondo que se pode manter o status quo indefinidamente e que é possível mexer tudo para não mudar nada, nada mais estamos fazendo que entrando, sobre os cascos, na própria cova, a mesma que vimos abrindo há trinta anos.

Onde está a São Paulo pujante, diversa, acolhedora, ágeil, empreendedora, democrática que recebemos dos paulistanos do século XX? No que a estamos transformando?
O que pretendemos para nossa cidade e para nós mesmos, nossos bisnetos e tataranetos? (Não cabe falar em filhos e netos pois estes já estão por aí!)

Ainda dá tempo, basta abrir os olhos, os corações e contribuir, individual, corporativa e coletivamente.
Basta dar ouvidos ao bom senso, basta entender que chegou a hora de abrir mão de parcela do “paulistano´s way of life”, fantasia criada na década de 70 e que de fato nunca se realizou… e se imbuir do espírito desbravador de busca e construção de uma cidade contemporânea, compacta, acessível, móvel, descentralizada, inclusiva, etc, etc, etc.

Mas para isso, é preciso também se imbuir de espírito público e entender que avançar custa: custa esforço e sacrifício. Só que é bom lembrar que retroceder sacrifica.

Valter Caldana

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