Um ano depois, Biblioteca Mário de Andrade deixa de ficar aberta 24 horas.
A grana está curta e a nova direção da Biblioteca alega que há pouco público no horário noturno e madrugada. Portanto, é claro que não há o menor sentido em fazer espetáculos de pirotecnia noturna com notas de 50 e 100 reais na Praça D. José Gaspar, certo?
Não é bem assim. Me incomoda há tempos esta visão de que se uma coisa pública não funciona bem ou como se desejaria então se elimina a coisa ou invés de, antes disso, tentar fazer direito, ou tentar fazer melhor, com o mesmo custo ou até com um custo menor. Isto vale para o Ciência sem Fronteira como para o fechamento da Biblioteca Mário de Andrade.
É possível afirmar, sem erro, que pouquíssimas pessoas sabiam que a biblioteca ficava aberta 24 horas… ou ainda que ela tenha (tinha?) uma programação chamada Cinemário (o nome já paga a conta!) com filmes clássicos e fora de circuito comercial, por exemplo.
Se assim é, poderíamos supor, no benefício da dúvida, que então a Biblioteca fosse sub utilizada durante a noite por isso? Ou ainda por que, quem sabe, uma Biblioteca no século XXI da informação e da conectividade, em uma megalópole, deva se reinventar? Aliás, em tempos de Google e conectividade plena, para que serve mesmo uma biblioteca? E daquele tamanho, então?
O fato é que a Biblioteca abrir 24 horas tem vários sentidos além do meramente funcional. Sua contribuição para a construção de uma cidade melhor não passa pela quantidade de pessoas que lá passarão a madrugada lendo um bom romance, os jornais do dia ou fazendo uma sofisticada pesquisa histórica.
Sua contribuição está em existir e estar aberta, está neste simbolismo. está nesta possibilidade de se tornar um equipamento à altura da metrópole que o abriga. Isto já bastaria, uma versão subequatorial da cidade que nunca dorme.
Mas a contribuição está, também, na possibilidade de ser uma alternativa a outras atividades noturnas bem mais discutíveis, hoje, no seio da sociedade do que a leitura ou uma boa roda de bate papo entre jovens. Me refiro à possibilidade de vir a ser um centro de encontro, um centro de troca e de crescimento cultural.
Não sou dos que acham que o Centro tem que melhorar para que seus equipamentos melhorem. Ao contrário, sou convicto que apenas com seus equipamentos funcionando, e bem, muito bem, o centro vai melhorar. Biblioteca, Municipal, Galerias … Minhocão demolido, terminais removidos…
Faz-se um verdadeiro brilho nos olhos de boa parte das pessoas por aqui quando falam do “Tolerância Zero” de Nova York. Em boa parte aquele brilho no olho que traduz um “bandido bom é bandido morto“, “lugar de pichador é na cadeia“… como se o programa americano fosse um simples programa de repressão, típico de republiquetas de bananas.
Acontece é que o “tolerância zero” foi uma das últimas etapas de um programa genial que tirou New York de uma situação análoga e ainda pior do que a de São Paulo e a recolocou na sua condição de capital mundial.
Muitos se lembram que no início dos anos 1970 eram comuns as histórias que nos chegavam por aqui de roubos a tênis, pessoas que tinham que levar o $ do assaltante no caminho do trabalho… Comerciantes que tinham que pagar pedágio para gangs e policiais. Até o Ricardo Amaral conta esta história, de maneira deliciosa. Vale, também, assistir Guerreiros do Bronx e Gangs de NY.
Pois bem… New York se recuperou com um programa amplo, cidade e estado, de elevação da auto estima dos seus cidadãos e de melhoria nos serviços públicos, que gerou benefícios diretos a todos, em amplos segmentos.
Para isso, uma das primeiras ações foi uma limpeza na polícia (que lá é municipal). Recomendo ver Sérpico… Esta limpeza foi fundamental para que qualquer outra política pública pudesse funcionar.
Depois, final dos 70′s veio uma campanha publicitária lindíssima e de rara eficiência
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praticamente lançada mundialmente com um show de Simon and Garfunkel no Central Park no início dos 80′s abrindo a campanha de sua reestruturação. Foi uma campanha que nos anos 1980 e 1990 se desenvolveu em escala mundial… Vale assistir boa parte da filmografia de Wood Allen.
Simultaneamente veio o coração da coisa toda, que nos liga finalmente à questão da nossa Biblioteca tupiniquim… Foi desenvolvido um programa intenso de atividades 24 horas na cidade, por toda a cidade, para “ocupar” jovens alvos de gangs, pichadores, pequenos punguistas, aviõezinhos do tráfico …
Foram reformadas dezenas, centenas de praças, pequenas quadras de basquete, esquinas, centros locais de atividades culturais, sopão, albergues… Apareceu até no McGiver! Monitores espalhados pela cidade para incentivar as atividades gregárias dos adolescentes, pré e pós. Era a mesma política tão utilizada por de nossas avós e que se resume em uma frase: moleque cansado não faz bobagem.
Também idosos, viciados e outras tantas pessoas em situação de rua foram alvos desta grande operação. Poder público estadual, municipal, entidades da sociedade civil, voluntários – uma constante na cultura norte americana – empresas locais e mesmo grandes corporações se uniram por um projeto de cidade. Fundamentalmente ligados pelo projeto, por uma política pública, souberam diferenciar contribuição de doação.
Depois disso tudo veio o tolerância zero. Um enorme sucesso!
(mesmo com umas “deportações” aqui e acolá e um intenso processo de gentrificação em algumas áreas específicas)
Hoje eles vão em frete, de novo no topo do mundo, pedestrianizando ruas, fazendo zonas 20 e 30, reduzindo a carrodependência, retomando e valorizando espaços públicos, aprimorando serviços, investindo maciçamente em cultura, tecnologia e entretenimento. E ganhando rios de dinheiro com isso…
È como eu digo sempre, nossas co-irmãs no mundo, cada uma a seu modo, todas estão se transformando há 45 anos, desde as crises do petróleo… há três gerações. A nós, diante do colapso anunciado, a obrigação de fazer tudo atrasado, em no máximo 15 anos, uma única geração… Podíamos, ao menos, aproveitar a única coisa boa de chegar atrasado, que é poder copiar o que deu certo. Infelizmente, quando copiamos, copiamos errado.
Estou obviamente apenas delirando num feriado cinzento. É claro que não temos Simon and Garfunkel para fazer um show no Central Park para abrir uma campanha “São Paulo Eu te Amo” ou “São Paulo Minha Cidade”. Maybe José e Durval no Anhangabaú…
Tampouco temos uma política para sanear a polícia, nem temos mobilização social para este tipo de coisa. Ainda confundimos contribuição com doação…
Aliás, acho até que nem temos gangs, pichadores ou punguistas, aviões só temos no céu e, tampouco, temos grana para manter sequer uma biblioteca aberta a noite toda… isto deve custar mesmo muito…
Valter Caldana