Mas, quem não é?

ou como trocar penas e bicos pode ser dolorido e doloroso

Passei meses, acho que anos aqui neste psicanalista eletrônico escrevendo que era fundamental a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Para mim se tratava de uma equação bem simples.

Parecia óbvio que o país precisava de reformas estruturais. E reformas estruturais só tem legitimidade plena e durabilidade quando grafadas na Constituição e esta seja oriunda de uma assembleia específica para tal.

De outro modo, a sociedade nunca estará pacificada diante do caminho adotado. Afinal, estamos falando de estrutura, não de conjuntura. Estamos falando de direitos e deveres fundamentais e não do modo ou da velocidade de sua implementação. Criei até uns bordões para o assunto: chama o povo meu povo era um deles. O outro, mais realista, era: na dúvida, pergunte ao povo.

Pois bem, a esmagadora maioria aqui da lista e mesmo fora da bolha discordava de minha insistência. Parei de falar no assunto. Meu TOC (COT, em ordem alfabética) de quando em vez se subordina à boa educação.

Quando Dilma fez, a seu modo, a proposta de uma Constituinte, direita, centro e esquerda a ridicularizaram e completaram o cerco de seu isolamento político. Motivo simples… naquele momento já não interessava a nenhum agente político ouvir o povo. A eles interessava, apenas, o voto do povo. E todos, diante do cômodo e supostamente rentável isolamento da presidente, estavam convictos de que teriam chances de ganhar as eleições seguintes.

E, ganhando as eleições seguintes, se sentiam cacifados a fazer, a seu modo, as reformas estruturais que bem entendessem. A direita as de direita, a esquerda as de esquerda e o centrão nenhuma delas, mantendo sempre tudo a seu favor.

Ganhou a direita, sabe-se lá como e com que artifícios, mas ganhou, e rapidamente já alterou trabalho, já alterou previdência e acaba de enviar ao congresso ordinário, como destaca o Samuel Pessoa bem no início deste artigo anexo, uma emenda “bala de prata” que demole a Constituição na sua “alma mater”, na sua estrutura principal, em sua linha de força, alterando os direitos fundamentais do cidadão.

Bem, não vou dizer que acho que uma ANC ainda é necessária, pois não acho. Hoje acho que ela será necessária daqui dez anos, talvez um pouco mais.

No momento, necessário infelizmente é o Brasil passar por tudo de ruim que já chegou e o muito que ainda está por vir. Será necessário que amargue mortes de fome, perda de patrimônio, perda de coesão social e de garantias mínimas de sobrevivência ao cidadão, ainda que potenciais, seja coletiva ou individualmente falando.

O Brasil flerta com este momento há muito tempo. Agora o encontrou.

O Brasil finalmente chegou ao ponto de olhar-se a si mesmo, de dizer a que veio, como veio e para que veio. De declarar em alto e bom som: “somos isso, sim”, como tem feito o presidente Bolsonaro e, em sendo isso dirá “sou, mas quem não é?” de um modo irretorquivelmente azambuja de ser, que deixaria Macunaíma corado.

Só depois de sair deste relacionamento consigo mesmo, desta dolorida DR, amadurecido, com o couro bem curtido, hematomas, fraturas, feridas profundas mas respirando, terá as melhores chances de pegar os cacos em que se transformará e as lembranças do que ousou sonhar ser um dia e poderá, então, sob um governo de coalisão e, de novo, de elite, convocar uma Constituinte.

Que faça um novo pacto que dure mais 25 anos e que tente um mínimo de atualidade, contemporaneidade, estabilidade, alteridade, misericórdia, solidariedade, justiça e espírito público na organização do Estado, nas relações do capital com a cidadania, e nas regras de funcionamento da sociedade.

Valter Caldana

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