Deu na folha (leia aqui) …
PM usa bombas de gás para dispersar foliões na Vila Madalena.
Há certos acontecimentos que aparentam ser pequenos no instante em que acontecem, mas se tornam emblemáticos e simbólicos quando a história é contada tempos depois. A ação da PM ontem no carnaval de rua da Vila Madalena certamente é um destes. Um divisor de águas.
E significa, no meu entender, a virada de que necessitava o temiiiiido “mercado imobiliário especulador” para vencer a batalha de ocupação da Vila.
O que não deveria ser nada mais do que mais uma prosaica, corriqueira e cotidiana demonstração de despreparo de nossa Polícia no trato com o cidadão, neste caso específico pode significar a ruptura de um equilibrado e complexo jogo de interesses que vem sendo travado naquela região da cidade.
Não vou aqui perder meu tempo falando que a nossa polícia marginaliza e criminaliza o cidadão, desrespeita a Constituição (até em programas de TV), que ela de modo geral usa carga acima do necessário para as circunstâncias e que por ser ela agente público de Estado é também a responsável pela retroalimentação da violência.
Me interessa uma reflexão sobre o significado desta ação e a reação a ela, inexistente, para a Cidadania, a Cultura, a Cidade em geral e a Vila Madalena em particular.
Quando em 1981 Golbery declarou que a bomba do RioCentro havia explodido no colo do governo ele estava querendo dizer que aquele era um momento de inflexão no delicado e complexo jogo da transição que se estava jogando naquele momento.
As bombas da PM desta noite, e prometidas / ameaçadas pelo comando para hoje de novo podem ter este mesmo papel. O que seria uma acordo de dispersão foi transformado em toque de recolher. Toque de recolher debaixo de porrada e bombas. É ridículo demais, não fosse trágico para uma cidade que está desesperadamente tentando se reencontrar, se reconquistar e construir suas possibilidades, mínimas, de sobrevivência neste século XXI.
Ah, lá vem o pacifista ingênuo… os delinquentes jogaram garrafas nos policiais!! Isto não é reconquista do espaço público!
Ora… quantas garrafas foram atiradas, por quantos, de que nível sócio-econômico, em que proporção em relação ao número de pessoas que estavam lá? Quem começou? Era necessário? Mas não era um baile de carnaval ao ar livre? A dispersão teve padrão FIFA de horário, mas e o resto? Dava para esperar? Dava para dar um chorinho? Os bares ainda estava servindo cerveja? Os traficantes ainda estavam vendendo maconha? A notícia é tão corriqueira que a reportagem sequer cita estas circunstâncias… São só mais algumas bombas e mais algumas porradas, dois ou três narizes quebrados…
Esta reação de normalidade, sem falar no velado apoio dos moradores mais tradicionais, é que define o momento de transição. Não se está percebendo que estas mesmas garrafas atiradas por pequenos vândalos despreparados para usar o espaço público, as bombas atiradas por policiais idem, as porradas, enfim, é que desfiguram, descaracterizam e afastam os cidadãos.
Criam um processo de gentrificação às avessas que leva à degradação e à perda de valor intrínseco e agregado da região. É simples, se mamãe não deixar a filhinha ou o filhinho irem brincar na Vila por que é perigoso e eles podem se machucar, parte dos elementos que compõem o valor da região se comprometem, comprometendo o equilíbrio a que me referi no início.
Para o mercado imobiliário o bairro intelectual, boêmio, pitoresco, de baixa densidade serve como apelo de venda inicial. Como já escrevi por aqui, o mercado destrói exatamente o que ele vende (leia aqui) . Para o mercado imobiliário o que constrói o valor da Vila é sua localização e a infra-estrutura urbana ali instalada, de resto como em qualquer outro lugar da cidade e do planeta.
Portanto, está na hora dos moradores da Vila entenderem que as festas de rua, os bares, os velhos comunistas aburguesados, os professores e alunos universitários em suas horas de profunda reflexão, os jornalistas montando suas redes de relacionamento e cavando frilas, as feiras, os galpões culturais, os pixos, os mijões, os trepadores, os maconheiros e até alguns desabusados delinquentes são seus aliados. Mais do que isso, são seus escudos, quase uma guarda pretoriana (que como a História nos ensina, sim, também mata o Imperador de quando em quando).
A única chance real, neste momento, que a Vila Madalena (assim como outros bairros e regiões da cidade) tem de não se destruir e ser destruída é elevar de tal forma seu valor agregado que qualquer ação seja muito, muito cara. Cara a ponto de propiciar a viabilidade de alternativas projetuais inteligentes, fora da zona de conforto do mercado imobiliário e que preservem as características que todos conhecemos, todos gostamos e alguns usufruímos. E que, por isso mesmo, e por mais paradoxal que pareça, se viabilizem economicamente sem criar um processo, totalmente indesejado, de expulsão de moradores e de usos ali existentes.
Não adianta os moradores, por mais idealistas que sejam, por maiores que sejam suas razões, sonharem com soluções institucionais, legais ou legislativas… Os avanços que conseguimos no Plano Diretor estão se esmaecendo na Lei de Zoneamento. Não é este o caminho.
Apelar para órgãos de preservação do patrimônio tampouco. Ainda que se defenda a possibilidade de tombamento de ambiências, não há massa crítica na Vila para diferenciar o tombamento da ambiência de um simples congelamento, extremamente oneroso socialmente.
Assim sendo, resta uma alternativa: como sempre, encarar o problema de frente e entender que é na convivência entre os agentes envolvidos que está a solução.
De um lado, superar preconceitos com relação ao adensamento e entender que este não é sinônimo de verticalização, como nos mostram Paris e Barcelona, duas cidades caras aos moradores e frequentadores da Vila.
A isso acrescente-se a necessidade de um regramento alternativo de parcelamento do solo. Note-se que a nova Lei de Zoneamento praticamente se omite com relação a esta questão (trata apenas da quadra máxima), se mantendo fiel à pior tradição de só tratar de uso e coeficientes. Sem um novo regramento de parcelamento do solo fica impossível a utilização inteligente e economicamente viável do miolo de quadra, imprescindível para que projetos alternativos de ocupação se materializem.
É também necessário buscar projetos que viabilizem a pedestrianização total e/ou parcial de vias, reestruturando o transporte coletivo e o fluxo de automóveis, evitando o efeito espalha brasa tão usado pela CET nos últimos anos. (Espalha brasa é a técnica usada em São Paulo de colocar veículos motorizados de uso individual, popularmente conhecidos por carro, tentando andar em qualquer lugar que tenha asfalto… acompanhado do asfaltamento da cidade inteira!).
Nestes mesmos projetos dar prioridade para o mobiliário urbano, cavar e valorizar espaços públicos onde nem se imagina, dar vazão para a energia criativa existente no local, políticas públicas e de educação para a cidadania, rever o papel dos recuos frontais das edificações de grande porte… rever o papel da polícia militar e da polícia CIVIL (sabia?) municipal.
Enfim, fazer um projeto de bairro (que a prefeitura ainda insiste em chamar de plano e já está colocando em segundo plano…) decente, participativo, que possibilite a criação de novas alianças entre os agentes produtores da cidade e não, como se está vendo mais uma vez, a potencialização das divergências.
Valter Caldana