Não é de hoje que insisto na ideia de que se não superarmos algumas lendas urbanas, jamais conseguiremos mudar o modelo de desenvolvimento urbano e construção de São Paulo, pois boa parte da crítica e da visão que a sociedade tem de sua própria cidade se faz sobre bases equivocadas e leva a resultados ainda mais equivocados.
Uma delas, a que mais insisto e sobre o que já escrevi por aqui e alhures é o mito da cidade não planejada. É hoje indisfarçável que São Paulo foi, ao longo do século XX, uma cidade minuciosa e vitoriosamente planejada. Planejada para ser como é.
Planejada que foi para abrigar um dos mais acelerados e complexos processos de crescimento urbano, desenvolvimento industrial e reprodução do capital que se tinha notícia até então.
Outra lenda a ser superada, outro mito a ser rompido, na mesma linha, é a ideia de que São Paulo fez, neste contexto, a opção pelo transporte individual.
Não é bem isso. O que foi feito, e em breve vou desenvolver esta ideia com maior precisão, foi a opção, desde Prestes Maia, pelo transporte sobre pneus, sejam caminhões (sim, muito utilizados nas décadas de 1930 e 1940 e até o início dos anos 1950), sejam ônibus, pois se tratava de um modal mais ágil e de implantação mais rápida e de menor custo, necessário para viabilizar a ocupação de terras baratas cada vez mais distantes do centro dotado de infra-estrutura.
Ao lado dos bujões de gaz, que permitiam a mesma liberdade no sentido de levar energia (cozimento, luz e água quente) a longínquos rincões da cidade que crescia, morro acima ou vale abaixo, o transporte sobre pneus é protagonista.
A assim chamada opção pelo automóvel é, na verdade, um efeito secundário.
O que ocorre é que ao se fazer a opção pelo transporte sobre pneus como modal principal, no que diz respeito à sua organização no âmbito público, ou seja, o transporte coletivo de média (alta para a época) capacidade, também se fez a opção por fazê-lo de baixo custo e de baixa qualidade, dados seus objetivos e o público a que serviria.
A opção pelo automóvel, transporte individual, vem complementarmente.
Antecipando a opção que seria adotada mais tarde para a ocupação do território brasileiro como um todo, a implantação de uma malha rodoviária, mais rápida e mais barata, em detrimento de uma malha ferroviária, de implantação mais lenta e mais cara ainda que mais eficiente, e reproduzindo um mecanismo que o Estado se utiliza no Brasil desde Pero Vaz, cria-se uma dificuldade para se vender uma facilidade.
Ou seja, ao se optar por uma cidade espraiada e se montar um sistema de transporte sobre pneus onde o coletivo é precário, se oferece, através de políticas públicas e financiamentos subsidiados (ver GEIPOT*, por exemplo) a alternativa do transporte individual, o automóvel que serve como meio de locomoção e também como meio de afirmação e pertencimento a uma nascente classe média urbana.
Deste modo, é preciso que se passe a considerar, para a definição de um novo modelo de desenvolvimento urbano, construção da cidade e uso e ocupação do solo que os problemas do sistema de transporte coletivo, mesmo sobre pneus, que São Paulo enfrenta até hoje são problemas de nascimento, não de crescimento. E que suas dificuldades de relacionamento com os outros modais, em especial trens e metrô, assim se explicam.
Entender fluxos urbanos, físicos, materiais e imateriais, superar a subserviência à pesquisa OD (Origem / Destino) e parar de confundir mobilidade com transporte e, portanto, trânsito com tráfego já é um bom começo.
Valter Caldana
* GEIPOT – O Geipot foi criado pelo Decreto nº 57.003, de 11 de outubro de 1965, com a denominação de Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes e com sua direção superior formada pelo Ministro da Viação e Obras Públicas, Ministro de Estado da Fazenda, Ministro Extraordinário para o Planejamento e Coordenação Econômica e pelo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, conforme foi sugerido pelo Acordo de Assistência Técnica firmado naquele ano entre o governo brasileiro e o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD).