Continuação do texto Sobre cotas na USP
Me ocorre, por lembrança de um interlocutor, que há nesta discussão uma confusão de origem.
Por definição constitucional a universidade se sustenta em três pilares, ou conjuntos de ação: a pesquisa, o ensino e a extensão.
Quando se fala no ENSINO, e em especial no ensino de graduação e, ainda mais em especial, numa universidade da natureza da USP, se está falando portanto de uma parcela razoavelmente pequena, em termos proporcionais, de suas obrigações, de sua missão e de sua atuação.
Este é o engano primário que se comete quando se tem este tipo de reação adversa com relação às cotas: a universidade, em especial a USP, não tem como fim precípuo ou principal formar diplomados, ainda que, evocando o grande herói nacional e gênio da raça o baiano Anísio Teixeira, a formação de quadros dirigentes e de nível superior seja estratégica para qualquer projeto de país e de nação.
Mas, voltando à questão, inicialmente é preciso então entender que se está falando de um sistema de cotas sociais no item ENSINO, em particular ensino de graduação, formação de quadros.
Neste item, que na minha opinião sequer é hoje a ação prioritária da USP visto que é suprido com grande quantidade e alguma qualidade por uma também grande quantidade de outras instituições públicas e privadas, a obtenção do diploma é sim um instrumento de ascensão social.
Ou, como hoje, de manutenção de posicionamento social, portanto de manutenção do assim chamado (acho horrível o termo) ‘status quo’.
Ora, se assim é, e é, que se assuma esta condição e que se assuma também o caráter público e socialmente transformador que o ensino de graduação deve ter. Para isto servem as cotas sociais.
Portanto, ao se falar de cotas, não se está nem de longe arranhando a grande e mais importante função social e estratégica da USP que é fazer PESQUISA, pesquisa pura, de base, de longo prazo, estratégica, a “fundo perdido” (sabemos que não é, ao contrário!). Não se arranha nem se faz cócegas na chamada produção de conhecimento estratégico. Coisa que ela faz, ainda, de maneira adequada. Mas tem potencial para fazer ainda mais e muito melhor.
Vou mais longe. Também não se pode confundir ou colocar as cotas sociais no ‘pilar’ ou na ‘conta’ EXTENSÃO pois aí sim seria uma maneira simplista de resolver as agruras dos que são contra, posto que legal e constitucional. Não se discute.
Seria maneira simplista, desonesta do ponto de vista intelectual e desabonadora para com a política pública ensaiada e para com seus beneficiários diretos os jovens estudantes e indiretos, a própria sociedade.
Extensão não é dar bolsa. Extensão é incluir a sociedade, a comunidade, os grupos de interesse, os movimentos sociais, as corporações nas atividades de ensino e de pesquisa. É se preparar para dialogar! Se preparar para modificar e ser modificado no curto prazo, já que em geral a produção acadêmica e científica, para desespero de muitos nestes tempos obtusos, é de médio e longo prazo.
Portanto, quando disse no texto anterior que a USP tem a chance de ouro de nos apresentar o maior e melhor programa de cotas sociais do Brasil é neste sentido que estou falando.
Ela tem a chance de se rever, de se reorganizar, de rever seus métodos e objetivos de ensino, sua capacidade de diálogo e de fazer extensão e, acima de tudo, de elevar a produtividade, a profundidade, a abrangência e o fator de impacto de sua produção de conhecimento.
Portanto, se a USP tem problemas, e os tem de sobra, estes não estão ligados nem serão agravados pelas cotas sociais. Ao contrário, insisto, a implantação desta política pública pode ser a tábua de salvação da própria Universidade, na medida em que é sua chance de se repensar, reorganizar e refazer seus laços com a sociedade.
Mas se ela considerar que esta política pública é apenas tirar a vaga de um ‘riquinho’ que precisa manter a posição social que herdou de sua família por um ‘pobrinho’ que terá a chance de ascender e acender socialmente, de fato não se vai sequer morrer na praia. Melhor nem sair do barco.
Valter Caldana