De um modo muito estranho a cultura do descartável, que assolou o mundo a partir da década de 1970 e foi o resultado da junção do avanço impressionante da química fina e da indústria de derivados de petróleo com o salto tecnológico que ampliou exponencialmente a capacidade de produção de bens de consumo tomou, aqui no Brasil, proporções inimagináveis até mesmo para os mais competentes e atentos de seus formuladores.
Me ocorre que deve ser culpa da ditadura, risos.
É, pois afinal ela se serviu desta oportunidade, a facilidade de elevar o consumo de bens para se legitimar junto à classe média urbana então adolescente e acabou sendo a fornecedora da primeira dose, do primeiro pico, do primeiro cachimbo… Mas não é este o caso aqui.
Como alguns se lembram, partir dos anos 1970 fomos inundados por saquinhos e sacões, copinhos e copões, pratinhos e pratões de plástico descartável, embalagens que chegavam (e ainda chegam) a ser mais caras que os produtos que comportam, chegando a roupas, livros, até bens de consumo duráveis paradoxalmente também descartáveis…
Foi quando começou a ser mais barato jogar fora que consertar, foi quando se consolidou a necessidade cada vez maior de se abreviar cada vez mais o ciclo de vida dos bens e a velocidade de troca (comércio) da mercadoria.
O produto, enfim, deixou finalmente de custar o que custa para custar o que vale e, mais tarde, a custar o que se pode pagar por ele..
Um caso típico foi a evolução dos computadores pessoais a partir da década de 1980 (aqui 90) e antes os eletro domésticos e, claro, a célula mater indústria automobilística.
É de lá para cá que começou a ser mais ‘eficiente’ largar mão, jogar fora e comprar outro do que mandar consertar… os sapateiros que o digam.
Pois bem, enquanto no resto do mundo a partir sobretudo dos anos 1990 os países desenvolvidos, alertas para o problema, começaram a discutir modos de combate, reversão e até mesmo eliminação ao vício – isto inclui até mesmo, ainda que tardiamente, os EUA – no Brasil a coisa rolou solta e esta cultura se impregnou em nossa alma.
Somos consumistas! Parece até que houve uma mutação genética por aqui. Somos quimicamente dependentes do consumo. Como tal, temos dificuldade de assumir a condição.
O grave é que esta dependência faz com que não sejamos apenas consumistas de bens, de coisas, de produtos. Passamos a ser ideologicamente consumistas. Isto é gravíssimo. Passamos a consumir tudo. Somos predadores.
O que é ser consumista genetica e ideologicamente? Não é simplesmente considerar que é melhor jogar fora do que consertar, que é melhor destruir do que reparar, que é melhor abandonar do que pegar o que tem de bom e melhorar. É sequer pensar que seja possível. É simplesmente descartar.
É deixar para trás um enorme patrimônio, em qualquer área, em busca de um incerto. É não ser capaz de reconhecer os aspectos positivos do seu próprio patrimônio, material ou imaterial, de sua própria trajetória, e descartá-lo.
É como a velha piada que traz o diálogo dos dois meninos no trânsito, quando um diz para o outro:
_ Olha a velhinha!
E o outro incontinente responde:
_ Mata, mata…
Hoje é possível perceber que a primeira grande vítima da nossa adesão doentia à cultura do descartável foram as cidades. Basta ver como foram tratadas (e ainda são) desde então. Que sociedade seria capaz de abandonar a quantidade de patrimônio construído, a começar de todos os centros urbanos, como nós abandonamos?
E a coisa foi por aí afora, até chegarmos onde estamos…
Descartando tudo… como se não houvesse ontem ou amanhã. Descartam-se políticas de mobilidade por que faixas são mal pintadas, descarta-se políticas de desenvolvimento urbano por que taxas são desequilibradas, direitos trabalhistas construídos ao longo de 80 anos por que a CLT tem falhas, acaba-se com a previdência pública construída ao longo de 60 anos por que ela apresenta falhas e injustiças, descarta-se a autonomia de elaboração orçamentária e de políticas públicas por que os gestores são incompetentes e corruptos, descarta-se um presidente eleito porque é incompetente…
Nunca se constrói um raciocínio coletivo que procure entender o foco do problema e saná-lo. Descarta-se a coisa toda. É a eterna certeza, compulsiva certeza, de que se é nosso é melhor jogar fora…
A próxima vítima desta nossa doença, nas telas da globo, será o SUS. Descarta-se uma brilhante política de saúde por que é mal aplicada. No momento, a grande vítima é a Democracia e a decência. Descarta-se a vergonha na cara por que…
Descarta-se o Brasil.
Valter Caldana