ou de como o desconhecimento leva à desorientação
Nós paulistanos precisamos aprender mais com a história da cidade. Ela é bem didática. E pode ajudar a tomar decisões para o futuro…
Por exemplo: boa parte da cidade que muitos ainda acreditam ter crescido desordenadamente (uma lenda urbana pois é justo o contrário) foi construída por PPPs, mais precisamente concessões, ou pura e simplesmente pela iniciativa privada.
Do sistema de trilhos à energia elétrica tudo teve a participação maciça de capitais privados, inclusive estrangeiros. Isto sem falar de prédios como a Estação da Luz, importado tijolo a tijolo, ou o viaduto Santa Ifigênia, pago aos ingleses em suaves parcelas durante 100 anos.
O viaduto do chá, belíssimo empreendimento privado, smj, tinha pedágio para ser atravessado… a pé! E seu desalinho com a Barão de Itapetininga, diz-se, se deve à recusa de uma baronesa ou similar em demolir seu palacete.
A esmagadora maioria dos bairros da cidade, entre rios ou fora deles, foi formada por loteamentos privados (legais e ilegais, regulares e irregulares) de glebas adquiridas de herdeiros por famílias estrangeiras que aqui chegavam com algum capital – Bonfiglioli, Mattarazzo, Abdalla, Crespi, Sarson – por empresas brasileiras e estrangeiras – Morumby, City – ou or famílias brasileiras que encontraram neste filão uma boa fonte de renda e liquidação de seu patrimônio (estas quebraram…).
Diz-se que isto explica, por exemplo, a grande quantidade de nomes de mulheres nos bairros e vilas da cidade. Seriam, em geral, os nomes das esposas, filhas e mães dos loteadores. Em alguns casos, porém, como da Dona Maria Antônia, da Dona Angélica e da Dona Veridiana (por que só ela ficou com o dona no nome da rua?) elas, e não eles, comandaram os empreendimentos e colocaram os próprios nomes.
Enfim… lembranças feitas para dizer que então há que se ter cuidado antes de assumir uma postura essencialmente contrária à participação da iniciativa privada na construção da cidade como se esta fosse apenas e sempre prejudicial. Foi com ela que a cidade chegou até aqui e, definitivamente, não é pouca coisa o que se construiu em pouco mais de um século…
Mas, por outro lado, é bom também ter cuidado ao defender apaixonadamente esta participação privada e ao mesmo tempo ficar reclamando que a cidade cresceu desordenadamente, sem planejamento, sem critérios, sem respeito ao seu meio ambiente e ao seu patrimônio, etc, etc, e tal. Afinal, ao contrário, as políticas públicas, definidas no seio do poder público, então como agora, foram meticulosamente elaboradas para facilitar a participação privada.
Dois exemplos, um histórico e outro atual são a opção rodoviarista lá atrás, que permitiu a prosperidade do mercado de terras com pouca ou nenhuma infra-estrutura e baixíssima densidade, a que chamo de extrativismo urbano, e, atualmente, a elaboração do marco regulatório, zoneamento à frente, que se preocupa ainda hoje essencialmente com o mercado imobiliário, deixando de lado todos os outros fatores e agentes produtores da cidade.
São Paulo é uma cidade “privada” e, como soe acontecer nestes casos, paga um preço alto por isso. Todos pagam, ricos e pobres, em dinheiro, em horas no transporte, em saúde, em dificuldade de acesso a bens e serviços, em destruição do meio ambiente…
Então, o problema que se coloca hoje não é entender e definir qual o papel da iniciativa privada na construção da cidade. Este a história nos ensina que é fundamental, vital. O problema que está colocado para a sociedade é entender e definir qual o papel se pretende do poder público nesta tarefa.
É hora de definir qual o grau de “privatização” do poder público e sua natureza é tolerável a partir de agora, quando o modelo de desenvolvimento usado nos últimos cem anos dá seus últimos suspiros, respirando por aparelhos, aparentando mais um cadáver insepulto.
Valter Caldana