Soneto

ou como aprender a sonhar acordado

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.
(Olavo Bilac)

O soneto é um poema de quatro estrofes, sendo dois quartetos e dois tercetos.

O marco regulatório do desenvolvimento urbano de São Paulo vai ser alterado. Se rompe um conjunto de regras que foi pactuado pela sociedade através de um exaustivo e exemplar esforço comum entre poder público, interesses privados e corporativos e grupos temáticos cidadãos.

Se rompe, infelizmente, pela sobreposição de uma agenda política partidário-eleitoral a uma política pública de primeira necessidade fruto de um pacto muito bem construído.

Esta revisão, teimosamente apresentada pelo prefeito ao arrepio de conselheiros prudentes e do que foi combinado e definido em Lei, afinal uma revisão muito mais ampla e eficaz está prevista para 2021, se mostra desnecessária nos seus termos e nos seus métodos.

Nos seus métodos por que altera elementos estruturais do Plano Diretor – mesmo sem tocá-lo – e por isso deveria ter sido preparada pelo executivo seguindo os ritos e rotinas previstos em Lei.

Nos seus termos pois sequer ataca questões essenciais do problema, que estão ligados ao fato de que temos uma Lei de Zoneamento anacrônica, ineficaz e conservadora em sua essência conceitual e na sua estrutura operacional.

Uma Lei que continua e continuará apostando na criação de dificuldades e afastando a população e sua parcela mais empreendedora do desejo de ação. Que continuará confundindo deliberadamente altura com densidade e trânsito com mobilidade, para ficar em dois aspectos contemplados nesta revisão.

De nada adiantam os esforços das equipes internas da prefeitura na elaboração de peças técnicas com alguma qualidade se as agendas político-ideológica e eleitoral atropelarem o processo. Todos sabemos desde sempre que há a necessidade de aperfeiçoamentos no marco regulatório do desenvolvimento urbano. Porém, estes devem ser feitos por todos, numa construção coletiva no mínimo semelhante à que produziu o marco em vigor. Por uma questão de respeito ao trabalho realizado e, também, de eficiência.

Não se resolvem problemas conjunturais com ações estruturais e vice-versa. As questões conjunturais que eram advindas da crise econômica, como o valor da outorga, poderiam e deveriam ter sido imediata e agilmente tratadas pelo poder público com legislações especificas, complementares e transitórias, preservando a integridade da Lei e de marco regulatório.

O mesmo se dá agora… O que é conjuntural, o que é estrutural? Por que misturar tudo e precipitar o processo?

Enfim…, preciso cuidar para não tornar este texto mais longo do que já está, posto que tanto mais se poderia dizer.

Se poderia dizer coisas como, por exemplo, o fato de que esta revisão é fruto de um arroubo político e uma bravata ideológica do ex prefeito que deixou o cargo em uma visita ao sindicato do setor imobiliário, pouco mais de um mês depois de sua posse, ignorando o trabalho, as conquistas e as concessões feitas pelos agentes produtores da cidade tanto no âmbito do executivo quanto do legislativo nos anos anteriores, justamente num esforço de construção coletiva do marco.

Se poderia dizer que ignora o fato de que o Legislativo se comportou à época de uma maneira rara em sua história e remarcável enquanto exemplo, posto que conseguiu ser republicano e eficaz em sua ação tanto na elaboração do PDE quanto da Lei de Zoneamento.

Se poderia dizer que uma revisão na Lei versando sobre aspectos que poderiam e deveriam ser objeto de legislação específica e complementar e fora do que está previsto na própria Lei gera insegurança jurídica, que é perniciosa para o ambiente de negócios da cidade

Se poderia dizer que estas alterações ora propostas estão ligadas à alteração do uso de verbas do FUNDURB e à venda indiscriminada de terrenos e áreas públicas e que isso somado aos incentivos à existência de vagas de garagem vão na contramão das necessidades ambientais, habitacionais e de mobilidade que na cidade urgem.

Por fim, se pode dizer que se trata de uma inciativa muito atrasada enquanto resposta à crise de 2016/2017 e perigosamente adiantada com relação à revisão prevista para 2021.

E, olha, isto por que sou favorável a que se possa fazer prédios mais altos nos chamados remansos, pois creio que nestes bairros consolidados não é a altura que afeta sua capacidade de suporte e sua qualidade de vida e, sim, a densidade, o que a Lei ignora e a revisão também.

Pois bem, para encurtar, é preciso que mais uma vez prestemos muita atenção à sabedoria popular.
Um soneto, por pior e mais piegas que seja, não se emenda. Pois sempre, sempre, será pior a emenda que o soneto.

Valter Caldana

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Em tempo: meu mandato como membro eleito do Conselho Municipal de Política Urbana acabou em setembro e, infelizmente, não houve uma última sessão do Conselho onde houvesse a despedida dos conselheiros e a apresentação dos novos. Digo isto por que, apesar disto, pude externar estas questões que coloquei no texto acima ao longo dos últimos dois anos e meio nas sessões em que o tema foi ali apresentado.
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