ou a confusão que se instala
quando não vale o escrito
Nos últimos tempos o Ministério Público e a Justiça interferiram em praticamente todos os projetos públicos ou privados de pequena, média e grande importância que estão ou estariam acontecendo na cidade.
Não vou discutir aqui os resultados destas ações, mas o seu significado.
Ao invés de preservar os interesses difusos da sociedade, sua missão mais nobre e importante, o MP e a justiça correm o risco de, involuntária e inconscientemente, se tornarem instrumentos de interesses corporativos e de grupos.
A sociedade brasileira está descobrindo a importância da arquitetura e urbanismo na construção da sua qualidade de vida com pelo menos, no mínimo, meio século de atraso. E ainda tem muito feijão para comer antes de começar a entender a real magnitude do assunto.
Isto já é, por si, um enorme problema cujos efeitos sentimos cotidianamente do ônibus lotado ao esgoto malcheiroso, da falta de creche à eleição do presidente, do quarto mal iluminado ao colapso dos pronto socorros. No entanto, esta judicialização nos moldes em que está se dando, piora o quadro ainda mais, por distorce-lo.
Quando dizemos que a cidade não é resultado, é resultante, o que se está tentando explicar, com a devida vênia e muita paciência, é que o sistema de forças que produz a cidade é dinâmico e é de sua interação que surge a energia da evolução.
Porém, a judicialização, como está se dando, está retirando do sistema judiciário seu caráter de força moderadora desta dinâmica, coibindo abusos, e colocando-o na desconfortável posição de parte, o que levaria a uma posição de impositura. Seus agentes estão assumindo, creio que sem perceber, a posição de litigantes, porém sem ter a base conceitual e doutrinária sobre o tema adequadamente consolidada em seu meio.
Aparentam não ter compreendido ainda que qualquer ação sobre o espaço, o lugar e o território são fruto de um modo de entendê-lo e desejá-lo a partir de parâmetros que tem origem econômica, política, social, cultural e, por isso, ética, conceitual e ideológica.
Assim sendo, ao invés de procurarem garantir, por exemplo, a adoção e o aperfeiçoamento de mecanismos participativos na elaboração de projetos, assumem um lado. E, ao assumirem um lado, desavisadamente, assumem um desenho. Um desejo, um arquétipo, um resultado. E não uma resultante.
Trocando em miúdos, ações e decisões estão sendo tomadas sem o devido lastro técnico específico e especializado e baseadas numa antevisão não explícita de cidade, que se forma através do exercício de parâmetros e critérios oriundos de uma vivência urbana empírica e sensível de um determinado segmento social específico.
Como esta judicialização, me parece, veio para ficar pelo menos por um bom tempo, necessidade deste processo de amadurecimento tardio da compreensão coletiva da importância da arquitetura e urbanismo, creio que vale alertar para alguns pontos.
O primeiro deles é que, da maneira como está se dando, há uma não explícita imposição de um tipo de cidade, de um resultado e não de uma resultante.
Outro aspecto é que, paradoxalmente, esta atuação está diluindo, ao contrário de fortalecer, o papel dos instrumentos participativos que já existem e ofuscando a possibilidade de seu aperfeiçoamento e empoderamento. Assim como diminuindo a possibilidade do surgimento de novos e mais eficazes instrumentos.
Afinal, cada vez que MP e a justiça questionam amiúde decisões que foram aprovadas em esferas técnicas e políticas do executivo e do legislativo e aprovadas em conselhos participativos específicos como o Conpresp, o Condephaat ou o Consema, entre tantos outros, estão, aos olhos da sociedade, diminuindo sua importância e acelerando sua inservibilidade e obsolescência. Transformam-nos de assessores na tomada da decisão em acessórios indesejáveis do processo decisório.
Por outro lado, esta mesma postura também fragiliza a posição do próprio MP e da justiça pois ao serem dessacralizado pelo excesso de uso, perdem sua eficácia, se confundindo com instrumentos convencionais.
É preciso recuperar, melhorar e elevar a qualidade da legislação e dos instrumentos de descentralização e participação, tornando qualquer ação mais legítima e eficaz. Precisamos voltar a fazer valer o escrito e precisamos aprender a respeitar decisões colegiadas.
Neste caso, mais importante do que questionar o decidido é criar meios de melhorar o processo de decisão.
Assim sendo, fica aqui um singelo apelo: que se cerquem, ao menos, de um corpo técnico variado e de alto nível, de preferência voluntário, para a construção de seu posicionamento
O MP é, repito isso à exaustão, em minha opinião, a maior de todas as conquistas da Constituição de 1988. Por isso sua atuação tem uma importância vital e não pode, de maneira alguma, se confundir com as mazelas cotidianas da sociedade. Ao contrário, é o instrumento privilegiado que temos para fazer valer a cidadania.
Valter Caldana