DESPOJOS

É claro que a pandemia influencia.
Mas, há tempos, muito antes da tragédia global, meu alter-ego ufano paranoico Policarpo U. Brazola e eu vimos comentando que há uma enorme orquestração destinada a quebrar nossa autoestima, para impedir que consigamos exercer nossa autodeterminação e usufruir de nosso brilho.
De modo geral associo o início público deste processo corrosivo da brasilidade às jornadas de 2013, mas ele começa bem antes. Faz parte dele, por exemplo, em nome de uma falaciosa equidade e objetividade, a progressiva desvalorização do processo eleitoral. As campanhas foram encurtadas, higienizadas e burocratizadas, espantando o eleitor do debate, estimulando o individualismo.
Esta desvalorização chegou a níveis de absurdo tão altos que um candidato vencedor se permite colocar o próprio pleito sob suspeição, e terminou por provocar o empobrecimento do debate programático, que se tornou a cada ano mais binário, simplista, individualista e, por fim, tosco e truculento.
Deste modo, diluindo a festa e arrefecendo o calor humano gerado pela possibilidade do envolvimento, o que se obteve foi o distanciamento da sociedade do debate e sua capacidade de alimentar grandes projetos coletivos, que são movidos pelos melhores desejos e mais ambiciosos objetivos de um povo nação.
Ao esfriar as campanhas e o debate coletivo, e burocratizar as eleições, se conseguiu tornar o voto uma ação cartorial, como quem reconhece uma firma ou autentica uma assinatura. Uma ação desinteressante e até indesejada, um estorvo. Como passa a ser indesejado e um estorvo, por consequência, o valor maior que ele representa, que é a própria Democracia.
Não obstante, Policarpo U. Brazola define como principal e mais bem sucedido momento da campanha “delenda amor próprio Brasil” o famoso mantra “não vai ter Copa”.
Mesmo que as evidências mostrem o contrário. Mesmo que aquela Copa tenha sido um sucesso (para quem este tipo de espetáculo predatório deve ser um sucesso). Mesmo que tudo tenha funcionado adequadamente para os (poucos) envolvidos e, naquela edição, o Brasil tenha obtido a sua melhor classificação (4⁰ lugar) desde a última vez em que foi campeão, o que não é pouco. Mesmo que tudo isso, o que se viu, de lá para cá, na base do “não vai ter Copa” foi o convencimento geral de que o Brasil está fadado a perder de 7×1 sempre e em tudo.
O mais recente exemplo disto é uma série de reportagens que andou circulando por aqui dizendo que a heroína dos passaportes que salvou a vida de várias pessoas não é lá tão heroína assim.
Respeitado o inalienável direito de opinião e expressão, o que chama a tenção é que não se nos permite, sequer, a possibilidade de termos uma heroína. Há que se desvalorizar o feito e a pessoa, imediatamente.
Mais grave, o que chama ainda mais a atenção é que as reações são pífias, quase que admitindo o “é isso mesmo… sou esperto, não vão me enrolar, estou sabendo, imagina se o Brasil teria uma heroína, sobretudo num momento tão grave da História”.
Dureza…
O que quero destacar, neste contexto, é que neste ano da graça que se inicia sábado que vem deveríamos comemorar 200 anos de independência.
Sim, duzentos anos! Bi centenário!
Data cheia, que deveria nos encher de orgulhos, lembranças, loas e comemorações. Projetos, possibilidades, promessas de futuro, de mais 200 anos de potência, felicidade, prosperidade.
E o que temos? Nada!
Neste momento já deveríamos estar com as festas prontas, campanhas nacionais de rádio, televisão, internet e outras plataformas… novelas, minisséries, peças, livros, poesias, músicas, hino, filmes, modelos de automóvel, promoções de viagens, roteiros, exposições agendadas Brasil e Mundo afora, um road show (em português castiço) cívico a insuflar nossa brasilidade, nosso amor próprio, trazendo à lembrança tudo o somos, tudo o que fomos capazes em dois séculos e tudo o que seremos nos próximos duzentos anos!
E o que temos? Nada! Nadica de nada. Necas de pitibiriba.
Exceção que confirma a regra, provavelmente graças a algum funcionário do palácio mais atento, que assoprou a efeméride no ouvido do nosso governador, este se mexeu e arrumou o dinheiro para terminar a obra de restauro do Museu Paulista, dito do Ypiranga, que estava encrencada há anos. Projeto bacana, pelo que ouço de amigos com obra bem feita, tudo indica que estará pronto e tinindo em agosto do ano que vem, para a festa do dia 7 de setembro.
Mas, que eu saiba, é só.*
Por isso, não posso deixar de me lembrar…
Ainda que sob o período mais duro da Ditadura, com apenas 10 anos de idade aprendi duas palavras novas. Uma delas, de difícil pronúncia, tive que aprender até mesmo a soletrá-la.
Ao aprender a tal palavra nova, ao ver a festa, ao ler e assistir sobre a independência e seus heróis, por óbvio ali nasceu também o interesse, o gosto, a admiração pelo Brasil. E pela Liberdade, que abre as asas sobre nós.
Claro que meu heróis mudaram, alguns morreram de overdose, de tantas overdoses. Eu, infelizmente, descobri que o Tarcício Meira não era o D. Pedro I e, felizmente, aprendi que quem definiu o ato da independência foi uma corajosa mulher.
Soube até que nossa independência foi mais administrativa e política que econômica, que uns dizem que foi comprada… Mas, nada disso afetou o gosto de festa, o cheiro de pertencimento, o prazer de colocar uma fitinha na antena ou na janela, o orgulho do Brasil. Por que me ufano do meu país? Porque me ufano do meu País.
Entristece ver que hoje, ao sermos incapazes de festejar nosso passado, assumimos que não somos capazes de desejar nosso futuro.
A campanha para quebrar nossas pernas foi vitoriosa. Nosso amor próprio virou vergonha, nossa autoestima empalideceu, nossos desejos coletivos esfriaram, nossa identidade se perdeu.
Mas, ainda há esperanças, há chances, há possibilidades.
Afinal, o colapso é o melhor e mais eficiente combustível que existe à disposição da humanidade. Não há de ser diferente conosco.
Além disso, LIBERDADE é mais bonito que despojos e
BI CENTENÁRIO mais fácil de soletrar do que
s e s q u i c e n t e n á r i o
em tempo: que venha 2022! Vamos klaxonar a Cultura Nacional, antropofagar as ameaças, devolver a Piaimã as desesperanças e vamos comemorar também o centenário da Semana, grito de Liberdade, construção de identidade.
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* outras iniciativas, nos comentários por favor, vale divulgar.
Valter Caldana
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