Nascido para o terceiro lugar

Leio que a China apresentou um plano para, em mais três anos, substituir todos os softwares estrangeiros em operação no país.

Há quarenta anos, Graças a mais um dos surtos de obrigatoriedade de ensino técnico profissionalizante no colegial, me formei em técnico em computação. Estudávamos o que havia de mais moderno na área naquele momento.

Isto vale dizer que acompanhamos a espantosa evolução dos cartões perfurados para cartões assinalados com grafite. Pude também estudar princípios de programação como se utilizar de algumas linguagens específicas como o Cobol e principalmente aprendemos várias coisas sobre diagrama de passos, algoritmos (que, quem diria, acabou dando nisso estou aqui), blocos de oito bits com e sem bit de paridade e mais uma infinidade de coisas.

Num momento em que este assunto mais parecia ficção científica ou coisas quase intangíveis, pois o contato mais próximo do cidadão com a informática era o preenchimento do cartão da loteca, que era perfurado pela mocinha do caixa, a coisa mais importante que aprendi na época só fui entender realmente muitos anos depois.

Dizia o professor, de quem injustamente não me lembro o nome, que no futuro (hoje) haveria três categorias de relacionamento com a informática e a computação: os que saberiam fazer as máquinas, o hardware, os que saberiam programá-las, fazer o software, e os que saberiam usá-las, os usuários. E que o poder estaria sempre entre os dois primeiros, cabendo ao terceiro exatamente isso. Ser terceiro.

O bom do Brasil é que nunca há falta de clareza nas suas opções. Somos terceiros. E quando há dúvidas, como agora, é se devemos continuar terceiros ou voltamos para o quarto.

Tampouco falta clareza no comportamento dos agraciados por privilégios.

Nós sustentamos por mais de dez anos (foi prorrogada para quinze, se não me engano) a reserva de informática, que nos custou caríssimo, inclusive no pró álcool, e que em 15 anos não conseguiu fazer o til e a cedilha num processador de texto e, sintomaticamente, nos legou uma das melhores, senão a melhor, tecnologia bancária do mundo.

Que venha a China, que venham todos.

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Muito além da imaginação

ou como uma estrutura se liquefaz
e vaza pelos dedos

O desmonte do sistema de ensino brasileiro, que começou há 50 anos e teve como um de seus marcos (não o único) o acordo MEC-USAid, foi assimilado e aceito pela parcela da sociedade hegemônica na composição do poder como se o seu alvo fosse a escola pública, para ela descartável já que ali não estariam seus filhos.

Ocorre que o plano era muito mais perverso e extrapolou os limites imaginados pelos brasileiros e, por fim, afetou dramática e definitivamente toda a estrutura e a qualidade da educação fundamental, básica e média no Brasil, levando-a ao colapso tanto na esfera pública quanto na privada.

Passado meio século, quando a geração que foi formada completamente dentro deste quadro de desmonte e desvalorização da educação e cultura, que os governos ditos de centro esquerda pós ditadura foram imperdoavelmente incapazes de reverter, chegou em sua plenitude ao poder público e privado o que temos?

Uma incapacidade comovente da sociedade de fazer análises que envolvam mais do que duas condicionantes. Uma sociedade que não ultrapassa silogismos binários e se tornou, por isso, incapaz de formular possibilidades de superação de seus problemas estruturais e suas crises conjunturais. Pois sequer as reconhece.

Valter Caldana

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Passa, mas não anda.

Para impor junto à sociedade sua atuação, o Estado dispõe, além de instrumentos legais, de outros mecanismos. Entre os quais, como diz Poulantzas, a criação de um “coletivo alternativo” que dificulte a formação de uma consciência de classe mais profunda e questionadora de seu próprio poder político e, ainda, possibilite ao cidadão o sentimento de participação efetiva nos mecanismos de exercício do poder.

A exacerbação dos sentimentos nacionalistas de uma sociedade em momentos de crise é um bom exemplo deste mecanismo.

Este novo coletivo está também intimamente ligado ao consumo. Pois, na medida da venda, ou troca, de seu trabalho por um salário, o cidadão conquista o direito ao consumo. Não apenas de bens, mas inclusive das políticas públicas ou do próprio território.

Pagar impostos, por exemplo, faz deste cidadão um “sócio” deste coletivo, com direitos. Morar, estudar, trabalhar, por exemplo, são pressupostos básicos da vida urbana.

Desse modo, as políticas públicas, nestes e nos demais setores, se inserem neste coletivo alternativo proposto pelo Estado, uma vez que o consumo pela sociedade dos benefícios gerados por estas políticas se dá coletivamente.

Aparentemente, através da elevação de seu nível de consumo, as classes trabalhadoras passariam a ter um acesso maior à própria determinação destas políticas e, enfim, maiores condições de influir e alterar a correlação de forças representadas pelo Estado. Como se fosse inquestionável o aforisma segundo o qual “ser cidadão é poder consumir”.

Ocorre que este conceito de consumo coletivo pode ser melhor explicado como sendo um consumo individual que se dá coletivamente. O que corrobora a idéia de que este é na realidade um mecanismo integrante do coletivo alternativo criado pelo próprio Estado.

Afinal, não se espera de um cidadão nenhum tipo de sentimento atávico diante da dificuldade cotidiana para entrar em um ônibus lotado.

O acesso das populações urbanas ao consumo é diferenciado espacialmente. Mesmo o acesso ao consumo do território ou aos serviços nele implantados. Tarifas subsidiadas e financiamentos a longo prazo, de “caráter social”, são prova disto.

É através de mecanismos como a elaboração destas políticas, montagem dos serviços e financiamento do seu consumo que o Estado planeja e desenha a cidade. E se utiliza de instrumentos legais como os Planos Diretores e as Leis de Zoneamento, Parcelamento e Uso do Solo, para materializá-la.

Valter Caldana

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Texto que escrevi em 1994, há 25 anos!!!! um quarto de século!!!, no meu mestrado. Tenho a impressão de que no Brasil o tempo passa, mas parece que não anda.

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Tolerância zero?

ou como a incapacidade cognitiva e
a má vontade de aprender
são letais para os vivos

Há nem mesmo um mês a Rede Nossa São Paulo divulgou no mapa da desigualdade que praticamente 80% da cidade não possui equipamentos culturais e de lazer públicos acessíveis, sobretudo aos jovens.

Os governos cortam e contingenciam fortemente verbas para cultura, considerando-a sempre ação perfunctória e desnecessária. Desperdício.

Segundo o governo do estado, a rede física escolar encontra-se ociosa (!!!???), com salas de aula vazias, o que justificaria o fechamento de salas e escolas (que mais se parecem presídios, tal a quantidade de grades de ferro e trancas). Ao mesmo tempo os programas de educação e ensino em tempo integral não prosperam, são ínfimos, e programas como o escola da família e escola aberta são suprimidos. Monitores são dispensados.

Nove jovens, entre eles uma criança, morrem em circunstâncias inexplicáveis em uma também mal explicada ação policial durante uma atividade cultural e de lazer pública em um bairro pobre da cidade.

…,
A incapacidade de cognição reinante é tamanha que não há a menor chance destas quatro assertivas serem relacionadas entre si e o gosto de sangue na boca da sociedade é tanto que a discussão que se coloca, a começar pela fala do comandante da tropa, o governador, é toda voltada para questões de segurança e repressão.

Falar o quê? Discutir o quê? Fazer o quê?

Valter Caldana

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Com que roupa?

ou a crônica de uma colapso anunciado

Quando digo que São Paulo praticamente já perdeu a janela de oportunidade para se manter na rede de cidades mais importantes do planeta, circuito pelo qual passará a produção e o usufruto da riqueza no século XXI, é por motivos como estes…

O debate municipal não passa, hoje, nem perto das questões relevantes levadas adiante no mundo. Estamos condenados ao mundinho da mesquinhez de uma disputa totalmente ineficaz em torno de algumas migalhas de coeficiente de aproveitamento em uma Lei de Zoneamento medíocre, retrógrada e ultrapassada. Este é o nosso retrato. Nosso instantâneo.

O problema não é não termos roupa para ir à festa. O problema é que não temos papo para estar lá. E os organizadores da festa e os outros convidados estão percebendo isso a cada dia com maior clareza. E os convites começam a rarear, a não chegar…

No fundo, nós também sabemos que não temos papo para estar na festa. Já na última reunião do C-40, que São Paulo um dia sediou, mandamos um secretário protocolar, ou coisa parecida, a passeio, ao invés de mandarmos uma comitiva de alto nível com os responsáveis pelo desenvolvimento urbano da cidade. O prefeito ir? Imagina!!! Bobagem…

Ao observarmos o quadro eleitoral para daqui a menos de um ano o desalento é ainda maior e a certeza de que teremos um futuro sombrio no médio prazo, nos próximos 30 ou 40 anos, é desanimadora.

É assustador observar o despreparo (seria sanável) e a irresponsabilidade (é insanável) de nossas lideranças políticas e econômicas. Mais assustador e angustiante ainda é ver a subserviente passividade dos cidadãos paulistanos que, um dia, tiveram o direito de jactar-se estarem numa das cidades mais empreendedoras do mundo.

O problema não é a tristeza de ver a que fomos reduzidos. O problema é a dor de antever no que seremos transformados nos próximos anos e onde viverão, se ainda estiverem aqui, nossos filhos e netos…

Bom dia São Paulo.
Tá na hora, ‘vambora’.

Valter Caldana

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