Fui interpelado por algumas pessoas em relação à minha posição quanto aos corredores comerciais em zonas exclusivamente residenciais, a já famosa disputa ZER x ZCor.
Pois bem, em poucas palavras, a quem interessar possa, se é que interessa a alguém além de quem me interpelou, posso dizer que:
. Sou e sempre fui favorável à manutenção das ZERs (antiga Z1) no zoneamento da cidade. Como menino do interior e depois paulistano que cresceu em uma delas e como amante da cidade e da cidadania, longe de mim achar que devem ser destruídas.
. No entanto não se pode fechar os olhos para o custo social da manutenção de áreas exclusivamente residenciais de baixíssima densidade em áreas centrais e/ou super equipadas da cidade. Há diferenças enormes entre ZERs nestas áreas e aquelas localizadas no terceiro cinturão ou além rios. Não dá para querer morar em “Pinda” e viver a 500 metros da Paulista simultaneamente. Para isso, paga-se. (Antes das vaias, favor ler o ponto anterior da argumentação)
. Há, também, que se considerar que existe uma diferença brutal entre as ZERs de baixíssima densidade e as ZERs de média densidade, conhecidas até aqui por ZEIS (sim, isso mesmo, as Zonas Especiais de Interesse Social são ZERs também… pasme!) A diferença entre elas está na densidade e na localização, portanto no seu custo social, e não no perfil sócio econômico dos deus moradores. (Só para esclarecer a constatação anterior… qual a diferença entre um condomínio e um conjunto residencial?)
. Portanto, aparentemente a grita com relação às ZERs não é em função do uso (pois ZEIS são ZER também, só que de maior densidade e menor custo social) mas sim em função do uso e da densidade! Trocando em miúdos, de modo direto… transformar os jardins entre a Brasil e a Faria Lima em ZER de média alta densidade pode? Predinhos de 4 a 6 andares, modelo Paris, Barcelona ou conjunto da hípica em Pinheiros, de uso exclusivamente residencial pode? É ZER também! Certamente a resposta será não, o que confirma a verificação de que o problema está mais na densidade que no uso. Só que é a densidade que provoca o maior custo social das ZER em áreas centrais super equipadas, não o uso.
Mas, continuando:
. As zonas corredor (atuais ZCor antigas Z8) nasceram a partir da mesma Lei que criou as Z1, na década de 1970. Portanto, não são novidade alguma, como aliás quase nada nesta proposta de PL do Zoneamento.
. Os corredores sempre tiveram o papel de “amortecer”, amolecer a transição entre uma Z1 e uma Z2, Z3, Z o escambau a quatro. Isto por que logo depois de definido o Zoneamento em 1972 (que começou com singelas 4 zonas de uso na cidade) se percebeu, já naquela época, que não se muda de zona como se muda de canal na TV… há que haver zonas de transição. Percepção esta, diga-se de passagem, que colocou de imediato em vários urbanistas a dúvida quanto à eficácia do zoneamento baseado em índices (modelo vigente em São Paulo até hoje) como instrumento de desenho da cidade.
. Além de amortecedores, as zonas corredor sempre funcionaram como “protetores” das Z1, mais ou menos do mesmo modo que o comércio entre quadras protege as super quadras de Brasília… Uma espécie de cinto de segurança, filtro, uma cintura pretoriana.
. Nestes 40 anos se aprendeu duas coisas de modo irrefutável: (i) na metrópole o que cria e sustenta o ponto comercial é o fluxo de pessoas – massa crítica de consumo – muito mais que as outras condições canônicas para a existência do comércio (fácil acesso, mão de obra abundante, proximidade do mercado consumidor, energia e infra-estrutura farta, grandes áreas disponíveis para estocagem, etc.) e (ii) assim sendo, não há zoneamento, delimitação territorial, que resista ao desenho imposto pelo fluxo de pessoas, em especial o fluxo de automóveis e transporte público.
Deste modo, sintetizando minha posição sobre esta discussão:
. Acredito que se trata de uma discussão (ZER x ZCor) bizantina, inócua e descabida, imposta por uma proposta de Lei que insiste num modelo de zoneamento superado, baseado em índices, tabelas de uso e excesso de zonas. Um modelo que nos últimos 40 anos se mostrou segregador, caro e injusto.
. A discussão ZER x ZCor não é a mais importante da revisão da lei do Zoneamento. E, pior, tem funcionado como uma espécie de cortina de fumaça, desviando a atenção da sociedade mobilizada – nos dois campos – para as questões centrais e estruturadores do futuro da cidade, a começar do próprio modelo de Lei velho e requentado que estamos engolindo goela abaixo sem o devido debate.
. No caso específico de ZER x ZCor isto é ainda mais perverso pois todos, moradores, proprietários, comerciantes e transeuntes destas áreas são vítimas do modelo vigente, engalfinhando-se por migalhas e quireras enquanto o essencial do futuro do desenvolvimento urbano se discute e se decide em outras esferas.
. Insistir nesta dicotomia entre zonas é desconhecer (para alguns), negar (para outros) ou desconsiderar (para muitos) que a cidade não é uma colcha de retalhos, um amontoado de fragmentos organizados em torno de interesses corporativos, de castas, grupos ou classes sociais. A cidade é um organismo vivo complexo, contraditório, diversificado, heterogêneo, multicelular e interdependente, onde cada parte funciona solidária entre si e com o todo.
. Não é a proximidade do comércio que coloca em risco a existências das ZER de baixíssima densidade, mas sim o desvio do trânsito para dentro delas, transformando ruas locais em coletoras e até arteriais, despertando o interesse e a viabilidade do surgimento de pontos comerciais. Vale lembrar que este processo teve início há mais ou menos 25 anos.
. Portanto, não é limitando o tipo de uso do solo nos corredores através de índices que o problema será solucionado. Como na piada sexista, isto é apenas vender o sofá. Num modelo de Lei e de cidade que gera zonas de direito (pintadas no papel) e de fato (as que acontecem nas ruas da cidade), o que protegerá de fato e de direito as zonas exclusivamente residenciais será impedir que o trânsito seja desviado para dentro delas.
. Para isto, é imprescindível que se supere o modelo rodoviarista e disperso de desenvolvimento urbano que prioriza o automóvel, o que nos coloca novamente no início da questão. Mais correto ainda seria associar a isso a mudança do modelo da própria Lei, levando à escala do Projeto Local a definição da materialização (calçamento, arborização, sinalização, altura, largura, volume…) e dos padrões de uso e incomodidade que cada atividade. Não adianta discutir vizinhança na escala global, esta deve ser discutida na sua própria escala, que é a … vizinhança!
. Seja como for, para proteger as ZERs de baixa ou de média densidade, de imediato, é preciso eliminar o trânsito de veículos do seu miolo. Para isso será necessário sobrecarregar o viário lindeiro, a saber, as vias coletoras, as arteriais e as rápidas, que ficarão ainda mais lentas.
. Ou seja, estar-se-á dizendo não à histórica prioridade dada à fluidez dos automóveis, privilegiando-se despudoradamente o um novo modo de vida, o cidadão, as vias locais, os deslocamentos a pé, a cidade mais lenta e menos estressada, os deslocamentos de curta distância e a intermodalidade para médias e longas distâncias, entre outras características fortemente desejadas senão por todos, ao menos por muitos.
. Se estará, portanto, caminhando no sentido do abandono total do protagonismo e dos privilégios dados aos carros particulares e ao modelo de desenvolvimento urbano disperso e rodoviarista, por ser caro para os que pagam, segregador para os que sofrem e injusto para todos.
. Se estará admitindo o colapso do modelo vigente, a necessidade do novo modelo e, então, se estará dizendo sim aos congestionamentos de automóveis durante a fase de transição da cultura e do uso e ocupação do solo, sim à cidade compacta, sim à prioridade à intermodalidade, sim à descentralização econômica e dos investimentos…
Para isso, será necessário que a sociedade, como qualquer pessoa diante do tratamento de uma doença mortal, pense mais na alegria do futuro do que no amargor do presente. E, de quebra, pense mais como pedestre e cidadão do que como motorista e consumidor.
Estamos preparados? Estamos dispostos?
Valter Caldana