Mesmo não sendo um sargento de milícias e muito menos um cabo de vassoura, vai um texto com um punhado de memórias. Já que, punhado por punhado, dólares também não tenho…
 
Apesar de ser uma empresa de águas, a queima da Sabesp deveria ao menos ter trazido à tona uma discussão, mesmo que sobre o leite derramado, ou no caso a água derramada, que é o modelo de privatização adotado no Brasil. Há décadas alguns de nós meros cidadãos nos incomodamos com isso. Mais até com o modelo do que com a privatização em si mesma.
 
Como se observa desde as primeiras vendas, Vale, Embratel e teles, bancos, etc., o modelo adotado é o modelo do mal negócio, o modelo queima de estoque. Aquele modelo em que o sujeito vende tudo como se não houvesse amanhã,  em troca de qualquer punhado de dinheiro líquido. A única coisa boa deste modelo, todo mundo sabe, é que você se livra do problema, ou daquilo que te é inservível.
 
Pois bem. O que ocorre no Brasil é que as estatais inservíveis, em que este modelo servia, foram as primeiras a serem torradas. Quando no governo  FHC se iniciou o programa de privatização,  havia mais de 400 estatais no Brasil. Éramos então potentes fabricantes de vela de cera a calcinhas e soutiens. Ou sutiãs, como preferirmos.
 
Estas aberrações, nós cidadãos leigos, aprendemos terem surgido, em linhas gerais, desde o tempo da ditadura quando empresários e empreendedores tomavam dinheiro a juro barato nos bancos oficiais, montavam seus negócios sem nenhum cuidado ou apoio na realidade e os quebravam, tornando seu passivo, sobretudo o trabalhista, um problema social. Passivo rapidamente solucionado com a empresa sendo encampada pelo Estado.
 
No final da década de 1970 a coisa ficou tão exagerada que mudaram o nome do BNDE para BNDES! Social…
 
Interessante notar que este mecanismo nada mais é do que uma prática, antiga, hoje escancarada, que é o Capitalismo Sem Risco. Genuína invenção brasileira que tem suas origens no império, ainda na fase pré-capitalista, ao lado da também muito utilizada socialização das perdas, é uma das causas, intocável, mais gritantes do déficit público entre nós.
 
É desta época, 1986, a famosa, lendária, frase de um governado de SP que teria dito: quebrei um banco, mas elegi meu sucessor  A frase, ninguém sabe, ninguém ouviu. Mas o banco, o Badesp, a versão paulista do bndes, de fato fechou.
 
Mas, retomando às memórias, vale dizer que estas empresas, as inservíveis, foram rapidamente liquidadas, fechadas, vendidas, doadas… ótimo!
 
Entretanto, era pouco, havia a necessidade de avançar.
 
Foi quando o consenso deixou de existir e dois modelos começaram a tomar forma. De um lado, os pragmáticos. De outro, os ideológicos.
 
Os pragmáticos entendendo que seria necessário avançar no saneamento do Estado, estancar os vazamentos, os focos de mal feitos e de ineficiências e os ideológicos, ainda minoritários nos governos social democrata cristãos entendendo que tem que acabar com tudo, não tem que sobrar nada. Vale o estado mínimo, como nos nossos parceiros EUA e Inglaterra.
 
Na primeira leva temos no governo do estado de São Paulo o saneamento e a modernização de várias empresas e agências como a Sudelpa, o Cepam, a Emplasa (teve até greve lá!), a Fepasa, o Metrô… e houve também ações mais enérgicas, como o fechamento do Baneser, agência de empregos públicos que à guisa de facilitar a gestão estava comprometendo sua eficiência e transparência.
 
Na outra trilha os ideológicos ganhando força,  sobretudo no campo federal com apoio internacional. Daí vieram as privatizações das grandes empresas de extração do patrimônio natural, tecnologia e sistema bancário.
 
Ali, o que se estava atacando, sob o manto de superar a ineficiência, era a estrutura do Estado  e sua função social, pois a partir desta fase o que se estava privatizando eram empresas lucrativas e com patrimônios incalculáveis como os bancos estaduais, Embratel e as teles, a Vale e outras mineradoras e certificados de lavra, por exemplo.
 
Em tese, se atacava os monopólios e o Capitalismo Monopolista de Estado implantado pelos militares. Ou seja, discussões muito além do pragmatismo ou da eficiência,  uma discussão ideológica.
 
É o amadurecimento e a implantação desta posição ideológica, que se tornou hegemônica de lá para cá que temos assistido nas três esferas de governo.
Se impôs a visão ideológica do desmonte do Estado e não a visão pragmática do vamos fazer funcionar.  Saímos da Social Democracia Cristã para o Liberalismo Antropofágico, da perpetuação do Capitalismo sem Risco e do Liberalismo Monopolista Privado de Mercado. Do mercado.
 
Como não se lembrar neste ponto da venda do Banespa, que era na prática maior que o seu próprio comprador em função do monopólio da folha de pagamentos e financiamento do próprio Estado.
 
Ou da Vale, vendida com as chamadas moedas podres financiadas pelo próprio BNDES. A Vale, na época, foi vendida em números absolutos, com todo o subsolo incluído, por um valor menor do que uma linha do metrô de Londres.
 
Foi quando surgiram, então, os mecanismos de venda do patrimônio gerado pelos monopólios, sob a argumentação de que se estava economizando custos e incentivando a atividade econômica saudável.
 
Ocorreu aí, talvez, a maior distorção neste processo. E esta é a discussão que seria útil ser travada por quem entendo do riscado.
 
Já sob a hegemonia da vertente ideológica e não da pragmática, a prioridade passa a ser vender o patrimônio como fim em si mesmo. Todo o discurso da conquista da eficiência se torna oco, sem sentido, sem rebatimento na realidade. Assim como a preservação do patrimônio público.
 
O que se vendeu a partir da hegemonia da vertente ideológica, e se vende, ao contrário do que se anunciou à época, não foi o serviço. Ou, melhor ainda, o déficit do serviço.
 
O que se vende, e em geral com grande prejuízo nos números absolutos, é o monopólio da exploração do serviço.
 
Vejamos a privatização do Metrô em SP. O Estado banca e garante tudo, do projeto à finalização da obra. Entrega a operação. E com cláusulas de ajustes contratuais por desequilíbrio financeiro.
 
Ou seja, o que dá tristeza e gera melancolia não é a privatização em si mesma. Mas é ela ser um péssimo negócio.
 
E causa desalento pois a discussão, diante da avassaladora hegemonia da vertente ideológica,  legitimada nas urnas, ainda é a da década de 1990, se contra ou a favor da privatização…
 
Nossos estrategistas vão mal… muito mal.
 
Valter Caldana