Anhangabau: considerações sobre um projeto (que não vi)

A prefeitura vai apresentar e colocar em debate o projeto para o novo Vale do Anhangabau. (veja aqui)

Vou tecer comentários sobre esta questão antes de ver o projeto desenvolvido pelos meus queridos amigos, que deve ser um bom projeto, para que não se confunda o que digo aqui com uma crítica ao próprio projeto. Trata-se de crítica ao processo.

Se tornou cansativo e inaceitável o descuido do poder público para com seu acervo, seu patrimônio de projetos de qualidade, todos engavetados ou desrespeitados. Só para o resgate das condições de uso do Anhangabau eu conheço vários, a começar do último, desenvolvido a partir da construção da belíssima praça das artes no beco Monteiro Lobato (tiro de guerra), cuja proposta, como não poderia deixar de ser, era se esparramar pelo vale.

Há tantas outras, que propõem transformações nos térreos do edifícios lindeiros, a instalação de novos usos e novos programas e a manutenção, sim, MANUTENÇÃO (palavra que causa síndrome de pânico, vertigem e calafrios no poder público) do que ali já existe.

Eu mesmo tive o prazer, há anos e anos, de ser co-curador da exposição de inauguração do MASP Centro, na Galeria Prestes Maia, justamente sobre o próprio. Instalar o MASP Centro na Galeria Prestes Maia, antiga sede do FENAME (talvez o melhor uso que ela já teve), foi uma tentativa de incrementar o uso cultural e institucional da área…

Pasmem, existe até a proposta de terminar de implantar o projeto original, seja do ponto de vista do sistema viário (como a alça subterrânea que nunca foi construída) seja singelamente fazendo o café (un tout petit peut trop parisien) que estava previsto.

Este caminho adotado da espetacularização das intervenções urbanas não nos alimenta, não resolve a cidade real. Ao contrário, com nossas mazelas e vicissitudes a espetacularização atrapalha. Exemplo claro disso? O Largo da Batata! Projeto violentado, mutilado e mal construído. Obras da Copa… precisa mais?

Por isto não posso deixar de protestar: o atual Anhangabau, com suas virtudes e suas falhas, foi fruto de um concorridíssimo concurso público, que contou com seminários para as equipes concorrentes, estudantes de arquitetura e outros interessados, além de um processo de consulta e discussão pública tão amplo quanto possível ainda no apagar das luzes da ditadura.

Concurso este que só aconteceu fruto de mobilização de “amplos setores” da sociedade preocupados, desde então, com o futuro do centro da cidade. Vale lembrar que houve, na época, inclusive, uma proposta de se construir mais um viaduto/passarela sobre o vale. Sendo Maluf governador, ainda me lembro dos debates sobre se o viaduto se chamaria passa_paulo ou paulo_passa. Feito o Concurso, ganhou a equipe composta por Jorge Wilheim e Rosa Kliass, ela uma profissional ainda atuante.

Modificar o Vale, reformá-lo, passados quase 30 anos, pode até ser desejável, ainda que de prioridade discutível. Eu mesmo teci diversas críticas ao projeto e seus desdobramentos nestes anos todos, algumas delas em conversas, privilegiadas, com os próprios autores.
Fiz também, ao tomar conhecimento das ilustrações do Ghel sobre a área , uma proposta alternativa… (leia aqui)

No entanto, reformar uma área como o Anhangabau, que compõe, em conjunto com a sufocada Praça da Bandeira a nossa praça cívica, numa cidade onde a História começa a se fazer cada vez mais presente, onde o sentimento de pertencimento começa, finalmente, a conduzir a percepção das pessoas com relação à importância da qualificação dos espaços públicos deveria ser feito de modo mais criterioso, respeitoso, caloroso, generoso.

Seria importante, neste momento, que fosse feito apontando para uma nova maneira de encarar a produção da cidade, uma maneira que não reproduza o extrativismo urbano e sua visão avassaladora de que a mesma seja composta por patrimônios descartáveis.

Esta visão, é verdade, quase virou uma marca paulistana e bem ou mal nos trouxe até aqui e nos tornou uma das 5 maiores cidades do mundo. Mas se exauriu, já não nos basta, já não responde a nossos anseios e nossas necessidades.

É preciso lembrar que se em pleno vigor juvenil só temos olhos para o futuro, a tudo atropelando num processo de crescimento desvairado, como São Paulo no século XX, e na velhice, em geral, só temos olhos para o passado, como muitas cidades europeias que se estagnaram e enfrentam o desafio de se reinventar, é na plenitude da maturidade, que São Paulo começa a vivenciar, que adquirimos a consciência de que construir o futuro implica necessariamente olhar o passado e analisar o presente.

O atual processo de reforma do Anhangabau se fez a partir de um caderno de ilustrações feito por um escritório contratado pelo Itau, que as doou para a prefeitura, que fez uma licitação para que um outro escritório desenvolvesse o projeto básico e/ou o executivo, que só agora se abre para consultas públicas, que deveriam ter sido, de fato, o início de todo o processo.

Sendo o Anhangabau um marco da cidade, seria muito bonito ver este processo também como o marco de uma mudança de postura da administração pública (não apenas desta, mas por que não desta) no trato dos espaços públicos, com a valorização do existente e do pré-existente, de sua história, de seus autores e, sobretudo, de sua apropriação pela sociedade, PELAS PESSOAS, como paradoxalmente prega o autor das infelizes ilustrações que deram origem ao projeto que se vai apresentar.

Precisamos ser menos gongóricos, barrocos ou malabaristas nos processos de tomada de decisões. Transparência e objetividade ajudam muito, como a própria prefeitura já percebeu em ocasiões recentes.

Continua…

Segue uma proposta para o Vale do Anhangabau, feita em fevereiro desta no. (veja aqui).

Arquitetura para todos, construindo cidadania.

Valter Caldana

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