Falso dilema.

Por que entender o que realmente significa a cracolândia é importante? Por que o dilema apresentado é falso.

Consideremos a cracolândia um microcosmo da cidade, nela havendo a representação de todos os seus agentes produtores: grande, pequeno e médio capital, poder público, iniciativa privada, políticos, empresários, trabalhadores formais e informais, infraestrutura urbana pública, serviços privados, patrimônio histórico, atividade cultural, crianças, jovens, adultos e anciãos, polícia, bandido, marginais e oficiais. Tem padre! tem pastor, tem rabino, pai de santo. Tem vida e tem cidadania.

Por isso é fácil entender que a cracolândia, assim como qualquer outra área e assim como a própria cidade é uma resultante da ação de todas estas forças atuando juntas e em conflito, se chocando todo o tempo, e não um resultado, que seria a prevalência da ação de uma delas sobre todas as outras. Cidade é resultante, não é resultado. E retira do conflito cotidiano a energia de sua própria evolução e sobrevivência.

Normalmente, numa cidade equilibrada o que se tem para a composição desta resultante é uma enorme, infinita quantidade de microscópicos conflitos, de microscópicos entrechoques simultâneos entre agentes que se comportam de maneira também equilibrada e quase sempre previsível.

Mas, o que faz com que mesmo agentes de tamanhos absurdamente diferentes como o grande capital e o pequeno cidadão trabalhador informal, por exemplo, ou ainda o comércio e a moradia, ou mesmo ricos e pobres possam conviver e agir em equilíbrio? O espírito público e a consciência de cada agente por um lado e, de outro, a ação do poder público, que existe exatamente para amortecer os impactos desta diferença de tamanho – e de apetite.

Por isso a cidade é um organismo vivo e sensível: por estar baseada em um equilíbrio frágil e dinâmico, em constante mutação. Toda vez que a cidade passa a apresentar desequilíbrios e anomalias graves – engarrafamentos, enchentes, poluição excessiva, déficit de moradias e de serviços básicos ou não, tamanho descomunal, etc. – é sinal de que o equilíbrio sempre dinâmico e precário do sistema está abalado. Vide São Paulo.

Voltando à cracolândia, por que se faz, então, tão importante observar, aprender e se posicionar sobre o que ali se passa? Por que é uma porção do território que se encontra em crise aguda e como resultado desta crise consegue mostrar os conflitos que geram a cidade e a ação de seus agentes não de modo micro, mas, sim, de modo macroscópico.

Não resta dúvidas que aquele território deva ser resgatado para a cidade e a cidadania. Não tem sentido ficar à disposição de grupos, sobretudo grupos de criminosos que ali mantém suas vítimas praticamente em cárcere privado.

Muito menos tem sentido manter todo o resto da população que ali vive, trabalha, cria filhos, mantém atividades comerciais, estuda, namora, sonha… à mercê de toda sorte de tragédia e de terror.

Sim, a cracolândia tem que ser resgatada para a cidade e a cidadania. A cidade é nossa!!! A cracolândia é nossa!!!

Bem, então se praticamente todos concordamos com isso, o que resta senão fazer?
Aí começa a questão.

Sendo um microcosmo da própria cidade, portanto um simulador, onde conflitos e agentes se comportam macroscopicamente fica fácil (dolorosamente fácil) enxergar também o que se disputa e como se disputa.

A primeira coisa que se pode perceber: não se está disputando ali a primazia do atendimento, do acolhimento ou da cura (entendendo ser uma doença) dos dependentes. Se assim fosse, programas em andamento há anos – do município e do estado – não seriam afetados e um deles simplesmente descontinuado de súbito.

Tampouco se disputa a primazia do combate ao tráfico pois, além de ser ali a sede de diversas forças policiais e de governo, tampouco se fez qualquer ação para coibir, inibir ou evitar o tráfico das drogas a duas centenas de metros do centro das operações, só que desta vez num “cercadinho” virtual em uma área pública, a praça ironicamente chamada Princesa Isabel, a libertadora.

Seria risível dizer que o interesse ali é o de acabar com focos de doenças e potenciais epidemias, cuidar de edificações com problemas de segurança ou assegurar a preservação de seu farto patrimônio histórico e cultural.

Ora, o que se disputa então? Disputa-se o que sobra. Disputa-se o de sempre. Disputa-se o território. E as formas de construí-lo, ocupá-lo, mantê-lo, usufruir e explorá-lo.
Mas se esta é a disputa cotidiana, então o que há de novo? O que se pode perceber e aprender ali de tão importante?

O que se pode perceber é uma feroz disputa entre modelos de produção, ocupação, usufruto e ganho com a cidade. Fica patente, por exemplo, o desastre de qualquer ação que não seja resposta às perguntas “que cidade queremos” e “quem queremos na cidade”. Cidades, por quê? Cidades, para quem? Cidades, como? Cidades, com quem?

Mas fica ainda mais claro e patente que qualquer ação, em qualquer parte ou porção da cidade, implícita ou explicitamente traz em si estas respostas. Na cracolândia não é diferente, só é, insisto, mais visível.

O que temos, senão resposta, quando um prefeito ele mesmo sobe num trator e determina a demolição de um casario histórico? Determina a dispersão de uma população refém de bandidos? Desconhece que não há apenas duas dimensões ou dois agentes atuantes naquela área, os bandidos e os nóias, mas sim todos os outros citados ou não no início deste artigo…

E a resposta que está dada, insofismavelmente é: o meu modelo é o resultado, não interessa o custo.

Ou seja, é o modelo de cidade que está em jogo. Qual cidade? Este é o dilema real, não o que se deve fazer com os nóia, se tratá-los lá, alhures, se prendê-los, se soltá-los.

O uso do desequilíbrio como motivação de uma metodologia de ação e sua assunção como possibilidade real e material de ocupação do território, ignorando qualquer efeito colateral presente ou futuro gera o falso dilema.

É o modelo de produção da cidade a partir da prevalência de um agente (ou grupo) movido por seus motivos, crenças, credos, arquétipos, pré-conceitos, convicções, sobre todos os outros em contraposição a um modelo que faz a cidade a partir e para o cidadão de forma abrangente, participativa, buscando o equilíbrio entre os interesses, a diversidade e a eficiência do sistema que se constitui no real dilema, na questão efetiva a ser respondida pela sociedade.

A falta de projeto organizado e explícito é, em si, um projeto.

É isto que é preciso focar neste episódio, além da proteção da vida dos dependentes e da cidadania dos moradores e frequentadores da cracolândia: o aprendizado de que não dá mais para passar por cima da discussão de como, para quem e para quê a cidade deve ser feita. E que tipo de vida, e com quais vizinhos queremos viver nela.

Os estudos, a ciência, a arquitetura e urbanismo e a prática no mundo todo mostram que os modelos de urbanismo de porrete já vão muito longe, século XIX, os modelos de urbanismo de gabinete, século XX, também…

O urbanismo da cidade do século XXI, o século das cidades, não é um urbanismo de resultados (e rompantes), é um urbanismo de resultantes (e projetos participativos).

A cracolândia é nosso retrato. Nosso triste retrato. Assim como a cidade é nossa, a cracolândia somos nós.

Valter Caldana

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