Um baita textão sobre o minhocão, de 2012, que achei hoje, perdido nas nuvens…
Na verdade, uma carta-artigo que enviei para o saudoso Jornal da Tarde que, se não me engano, não foi publicado, nem em partes.
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Sr. Editor,
Foi com grande honra e satisfação pessoal que me vi citado pelo editorialista deste diário, do qual desde a juventude sou um atento leitor.
No entanto, foi com ainda maior satisfação que acompanhei, como cidadão e como arquiteto e urbanista envolvido com o assunto, o anúncio pela Prefeitura de São Paulo da contratação de projetos urbanísticos que viabilizem a demolição do “minhocão” e a recuperação para a cidade das áreas lindeiras à via férrea.
É fato que fiz em entrevista a seu repórter, como faço há já alguns anos, uma entusiasmada defesa desta ação (a desmontagem do “minhocão”). E é fato também que defendo que a mesma se dê o mais rapidamente possível, não devendo ficar atrelada a obras caras e de longo prazo de execução como, por exemplo, enterrar a ferrovia e transformar seu leito atual em uma avenida (esta sim uma ação discutível caso não seja uma via totalmente projetada e construída a partir de preceitos e critérios urbanísticos e não viários).
E, certamente, esta não é uma posição apressada.
Ao contrário, posso lhe assegurar que a demolição do minhocão é que está atrasada, muito atrasada.
Infelizmente tão atrasada quanto a nossa conscientização de que a cidade não é palco (inanimado) da vida urbana, mas sim um de seus protagonistas.
Tão atrasada quanto está atrasada a nossa conscientização de que São Paulo está decidindo neste exato momento se continuará sendo, ao longo do século XXI, uma cidade tão importante quanto foi ao longo do século XX.
E, cabe sempre o alerta: caso não sejamos capazes de tomar as decisões necessárias, na escala e na velocidade necessárias, vivenciaremos problemas graves não mais em uma cidade pujante como é a nossa, mas sim em uma cidade empobrecida, debilitada e decadente. E, aí sim, conheceremos o verdadeiro significado das expressões colapso e caos urbano.
Pretendo que esta carta seja curta e, por isso, no detalhamento de minha posição alguns dos argumentos históricos ligados à formação e à evolução da cidade de São Paulo e de sua Região Metropolitana deixarei para uma oportunidade mais adequada. Coloco-me desde já à disposição do jornal e do editorialista para tratarmos do assunto sempre que for oportuno. Convido-os mesmo a programar um evento conjunto sobre o tema aqui em nossa faculdade.
No entanto, não posso me furtar a colocar alguns argumentos que complementam minhas declarações ao seu repórter, naturalmente apenas parcialmente aproveitadas.
Peço ao editorialista que considere as seguintes questões:
O “minhocão” é apenas parte de um sistema viário bastante amplo e complexo, que é a ligação leste-oeste da cidade de São Paulo. Esta ligação, em função do traçado histórico da cidade, de sua topografia e de sua rede hidrográfica representou sempre um grande desafio urbanístico no crescimento da capital.
A construção desta atual ligação leste-oeste no final da década de 60 do século passado, realizada de acordo com os preceitos rodoviarista e monomodal hegemônicos naquele momento – baseados fundamentalmente no automóvel e no transporte individual – foi decisiva para o crescimento da cidade à Leste, num modelo de urbanização dispersa (propiciado pelo carro) que possibilitou uma enorme quantidade de negócios imobiliários, mas que hoje se mostra caro e de dificílima manutenção e administração. Lembro que pagamos o preço deste modelo até hoje e que se nada for feito continuaremos a pagar.
É preciso lembrar que estamos falando de um período (1967/1970) em que nossa indústria automobilística completava apenas dez anos de vida e a classe média urbana praticamente inexistia. Faltavam ainda dois ou três anos para que a Castelo Branco ficasse pronta e pudéssemos ir comer bife à parmegiana de Opala, Dodge Dart ou Galaxie (LTD Landau) em Itu.
Era também um período no qual em uma das extremidades da ligação projetada havia uma Barra-Funda e arredores (Lapa, Água Branca, Vila Romana) ainda horizontais e em plena atividade industrial, e que a leste encontravam-se intactos grandes terrenos e glebas de baixíssimo custo, adequados à instalação de galpões, depósitos e “mão de obra de baixa qualificação” aguardando para serem explorados. De onde minha declaração de que mudou qualitativamente, de modo significativo, o tipo de uso a que se presta o elevado hoje em dia.
Defendo também que se considere que a cidade já está construída, não cabendo aqui discutir se aquelas foram decisões acertadas ou não. Foram decisões que construíram a cidade em que vivemos hoje, com seus problemas e suas qualidades, que também são muitas. E é esta cidade que devemos preparar para o futuro.
Não obstante, administração, sociedade civil e seus diversos setores como o setor imobiliário, a universidade e a imprensa temos a obrigação de aprender com nosso passado, coisa que, como se vê com freqüência (vide alargamento das marginais), infelizmente temos relutado em fazer.
O mundo se transformou. Hoje as relações econômicas e espaciais são muito mais intensas e muito mais complexas. São Paulo se tornou uma cidade mundial, com uma classe média ampla, ávida por consumir (inclusive a cidade) e por se deslocar.
O fato é que nestes 40 anos a cidade cresceu e mudou. Criou novos pólos, novas centralidades, novas economias, novas deseconomias e, acima de tudo, novos personagens e novos caminhos. A Barra-Funda não é mais um parque industrial, está sub-utilizada, e a zona leste não é mais um depósito, ou uma mina de negócios imobiliários simplistas a ser intensivamente explorada.
A cidade deixou de ser palco de negócios para se transformar no negócio ela própria.
Por isso, entre tantos outros motivos que não trataremos aqui, é imprescindível e urgente que seja revisto o modelo de urbanização dispersa, monomodal e rodoviarista que vem sendo aplicado na construção de São Paulo deste o final da década de 1960.
Assim sendo, quando afirmo que o “minhocão” pode, e deve, ser demolido com a maior brevidade possível o faço não baseado em dados e argumentos rodoviaristas, originados no mesmo modelo e na mesma cartilha que nos condena ao paradoxo de vivermos uma vida urbana de baixíssima qualidade numa cidade de alta qualidade. Estou, sim, procurando basear a argumentação em conceitos e critérios mais amplos, não apenas viários, mas urbanísticos.
Tenho repetido amiúde que precisamos urgentemente parar de construir ruas sem construir cidade! Prática da qual o “minhocão” é um marco histórico.
Para exemplificar o que estou dizendo, sobre construir ruas construindo cidade e aprender com nosso passado, sugiro uma comparação rápida entre o Elevado Costa e Silva e as Avenidas Ruben Berta/Moreira Guimarães/23 de maio… Estejamos atentos para a qualidade da cidade gerada em seu entorno por um projeto e pelo outro. Ou seja, a cidade está aí, os exemplos estão aí, basta olhá-los com carinho e atenção.
Ou seria coincidência que as mesmas diferenças de qualidade urbanística e construtiva estejam presentes tanto num comparativo entre as linhas norte/sul e leste/oeste do metrô quanto entre as ligações rodoviárias norte/sul e leste/oeste da cidade?
Vale destacar também que, ainda que fôssemos discutir esta demolição no mesmo universo em que a questão foi colocada em seu editorial (o da manutenção do modelo rodoviarista, monomodal e disperso de cidade) poderíamos usar os clássicos argumentos quantitativos (e não qualitativos) tão fartamente empregados nestes últimos anos e apelar para a consideração estatística de que numa cidade que convive com um congestionamento médio de 90 a 120 km x pico x dia um incremento neste quadro da ordem de 4 a, digamos, no máximo 6 ou 7% seria insignificante diante das vantagens alcançadas.
Lembro que argumentos desta natureza acabaram de justificar, por exemplo, a obra na marginal Tietê, rodoviarista e monomodal, a um custo declarado de 1.800.000.000,00 de reais.
Nesta linha, poderíamos ainda dizer que a cidade em pouquíssimo tempo absorveria a ausência do “minhocão” criando caminhos alternativos, se servindo de uma capilaridade inexistente há 40 anos. Isto a exemplo do que assistimos a cada vez que obras de vulto são realizadas, tais como a interdição de trechos da Rua Pinheiros ou da Avenida Paulista e do Largo da Batata para a construção da linha 4 do Metrô, ou de extensos trechos da própria marginal por mais de um ano para sua ampliação, quando especialistas alardearam o colapso do trânsito nestas regiões.
Precisamos reconhecer que a capacidade de regeneração do tecido urbano é enorme e que a adaptabilidade da cidade às suas novas configurações é proporcional ao seu dinamismo. O que não se pode é permitir que isto se dê de forma propositalmente desconexa, como se tem visto nos últimos 40 anos.
Mas, talvez, estes sejam argumentos ainda pouco profundos, pobres. Tão pobres quanto argumentar que 80.000 veículos/pessoas dia teriam que se adaptar para gerar benefícios incalculáveis para uma frota de mais de 5.000.000 de veículos e uma população de mais de 10.000.000 de habitantes só na cidade de São Paulo. Um argumento certamente simplista, porém semelhante ao utilizado em qualquer processo de desapropriação necessário para a construção de hospitais, escolas, linhas de metrô e, por que não dizer, avenidas!
Seria possível também destacar que esta é uma obra privilegiada, pois pode ser experimentada e revertida antes de consumada. Para isto bastaria que se fechasse o “minhocão” por um período de seis meses para verificar o real impacto da medida no trânsito da cidade. Caso as previsões otimistas aqui lançadas não se realizem, o fechamento poderia ser imediatamente revertido.
Não obstante, o que importa é reconhecer, sim, que derrubar o “minhocão” não é necessário para ver realizado o “sonho de dar nova vida aos lares degradados, insalubres e assaltados todos os dias pelo barulho infernal dos automóveis”. Isto seria realmente insustentável numa relação custo benefício. Mas isto é olhar apenas parcialmente para o problema e para sua solução.
Derrubar o “minhocão” é necessário por que hoje ele representa um fator limitante para o desenvolvimento do centro – área estratégica para a capital e região metropolitana – à altura das necessidades da cidade.
O centro de São Paulo é a única área capaz de articular e ordenar com coerência e consistência a vida em uma cidade poli-nucleada por natureza e por formação histórica, mas que convive paradoxalmente com um modelo de administração e uma distribuição de riquezas absolutamente centralizadas e concentradoras.
Todos já sabemos que São Paulo sem centro é como um animal mortalmente ferido, um ser desarticulado que cresce de modo anômalo, desequilibrado e dissipando energia. Mas que mesmo ferido sobrevive e cresce, por que é forte. Aprendemos isto nos últimos 30 anos.
Por isso precisamos também aprender que a degradação provocada pelo “minhocão” é maior que aquela visível. A desvalorização provocada pelo elevado não se dá apenas nos imóveis lindeiros ao eixo São João / Largo Padre Péricles. É muito maior, vindo a sul e oeste até os limites das Avenidas Higienópolis e Pacaembu e a norte e leste, onde é ainda mais intensa, até os limites da Avenida Tiradentes, Avenida do Estado e Marginais.
É importante lembrar que esta degradação encontrou na assim chamada Cracolândia seu terreno mais fértil, e todos estamos acompanhando atentamente o quanto recuperá-la vai nos custar em tempo, dinheiro, ordenamento jurídico e cidadania (concessão urbanística).
Mas se a cidade já nos mostrou o que acontece quando nossos projetos e nossa ação não estão à altura dos problemas que criamos ou quando não nos comportamos com o respeito que ela merece, é ainda mais importante aqui entendermos por que nos últimos dez anos várias centenas de milhões de reais foram investidos na área central sem que produzissem o efeito global desejado.
Desde as iniciativas de zeladoria urbana, troca de pisos e iluminação, recuperação de áreas verdes, construção de teatros e museus de altíssima qualidade até o deslocamento para a região da sede da Prefeitura, suas secretarias e de parte da administração direta e indireta do Estado, o fato é que muito se fez.
Mas é fato também que, infelizmente, nada disso se traduziu em benefícios proporcionais aos esforços realizados, o que se dá, claramente, por ter a área central, na sua atual configuração, atingido seu limite, seu teto.
A cada centavo ali investido aumenta a impressão de que nada adianta, sentimento aparentemente compartilhado por seu editorial e que afugenta o outro elemento vital desta equação, que é o desejo de recuperar e investir na área por parte da sociedade como um todo.
Realmente de nada adianta o investimento de milhões na área central se o “dono do boteco” não se anima a reformar os sanitários, se o dono do restaurante não investir na cozinha e na formação de seus garçons, se o lojista não investir na renovação de seu estoque, se o banco não investir na modernização de sua agência ou se o mercado imobiliário não investir em lançamentos e na construção de moradias. E, principalmente, se a sociedade, o cidadão, não se orgulhar e quiser estar no centro da cidade por ser uma região de qualidade por excelência e por definição, ao invés de se sentir condenado a ter que ali morar ou trabalhar cotidianamente.
E, que fique claro, este limite a que esta submetida a região central da cidade se dá pelo simples fato de que ela foi transformada de área de estar, de morar, de trabalhar, de recrear, de estudar, de produzir, de articular a vida da cidade, de cérebro e coração, em uma simples área de passagem.
De outro modo, mais figurativo: a área central foi transformada, pela presença do “minhocão”, de sala de estar em corredor. E, por mais que se enfeite o corredor, ele será sempre o corredor.
Quando defendo aqui a demolição do “minhocão” o faço por ser esta uma ação necessária para mudarmos os paradigmas das análises, para trocarmos de cartilha, de resto como o foi a sua construção.
Precisamos voltar a construir mais Cidade (com qualidade urbanística, atividade econômica, cidadania) e menos leito carroçável. Definitivamente não adianta mais construirmos ruas e mais ruas para que uma multidão caminhe acéfala, a esmo, sem direção, sem rumo e sem qualidade de vida. Está mais do que claro que só se resolverá o problema de trânsito em São Paulo diminuindo a necessidade de viagens e não aumentando a quantidade de ruas.
Construir uma cidade descentralizada e não uma cidade dispersa, aproveitando suas qualidades e sua energia, respeitando sua geografia e sua história, é o único caminho viável para a solução dos problemas urbanos que enfrentamos e para prepará-la para os imensos desafios que vêm junto com o século XXI, que prenuncia um novo pacto internacional em um novo planeta.
Por fim, é claro que a demolição do “minhocão” será projetada e não realizada de forma irresponsável ou apressada, apesar de ser uma obra que está atrasada.
Este deverá ser um projeto que assuma sua importância estratégica e sua responsabilidade com o futuro da cidade seu futuro, como foram os projetos que, no início do século XX construíram as bases da cidade que usufruímos com gosto e com orgulho em sua segunda metade.
Mas este deverá ser um projeto urbanístico e não um projeto viário. Um projeto que certamente conterá um bom projeto viário e todas as medidas mitigadoras necessárias para minimizar o impacto da obra sobre o trânsito, mas que deverá contemplar esta necessária mudança de paradigma ao propor a construção de cidadania, qualidade de vida e atividade econômica através do resgate da importância da área central para o cotidiano da cidade, lhe devolvendo seu status de destino real e simbólico e livrando-a das amarras que impedem seu pleno uso pelo cidadão.
Deverá ser, enfim, ser um projeto urbanístico comprometido com o futuro da cidade, e que contemple propostas criativas, ousadas e corajosas que estejam à altura de sua história, dos índios, dos jesuítas, dos bandeirantes, dos colonos, dos imigrantes, de São Paulo.
São Paulo, 31 de outubro de 2012
Valter Caldana