Tolas considerações conjunturais e constituintes.

Em boa parte dos países ditos centrais, do primeiro mundo, Europa Ocidental, EUA, Japão, uma característica é marcante. No jogo democrático se vai até as últimas consequências, chegam mesmo a radicalizar posições, mas não se coloca em jogo as instituições e não se coloca em jogo a própria sobrevivência da Nação. Não se coloca em jogo os princípios de convivência institucional e democrática. Não se ataca o país.

Ao contrário de nós que, com uma velocidade indescritível, jogamos fora avanços obtidos a duras penas diante de qualquer instabilidade que se avizinhe. Mormente quando esta instabilidade é provocada por agentes externos, interessados obviamente em nos manter na condição de celeiro fornecedor de produtos primários a bom preço (baixou o Brizola!) ou discutíveis políticas econômicas internas.

Vejamos os governos Clinton e, mais recentemente, Obama. A disputa do Executivo Democrata com o Congresso Republicano chegou ao limite do iminente calote da dívida americana, que naturalmente não veio e obviamente as lideranças souberam se compor em uma situação que espelhasse a correlação de forças daquele momento. Por outro lado, veja a política externa de Obama, que de diferente tem, talvez, o tamanho do sorriso com que seus agentes defendem os interesses exclusivamente norte-americanos.

Por sua vez a Europa: diante de crises econômicas os agentes políticos e os cidadãos engajados se digladiam internamente, mas em nenhum momento deixam de ter clareza sobre o que se passa e, sobretudo, sobre o fato de que crises são, em sua maioria, conjunturais e não estruturais. Ainda que sejam manifestações conjunturais de problemas estruturais. Ou seja, em outras palavras, não assacam contra si mesmos ou contra o que construíram e acumularam no tempo.

Aqui, ao contrário, temos esta tendência (que para mim já passou de cansativa a insuportável) de não se diferenciar o que é estrutural do que é conjuntural, de não se conseguir enxergar avanços onde eles ocorrem e de achar que tudo irá por água abaixo ao menor sinal de crise. Saímos do otimismo quase irresponsável, pois sabemos que tudo no fim vai dar certo, para um pessimismo destruidor. Sem escalas.

Sem falar do paradoxal e enorme medo que temos da evolução, do desenvolvimento, do novo. Temos medo de ousar, ainda que nas aparências não sejamos conservadores. Basta vermos o que se deu em 1930/32, em 1954, em 1958, 1964, 1977, 1984, 1992, 2002, e agora. Por outro lado somos magnânimos, somos felizes, somos livres e democratas de espírito. Será? Nada como Faoro, Caio Prado e Florestan para explicar isso.

Estamos vivendo no Brasil o agravamento de uma crise econômica que assola o mundo todo desde 2008/2009. Ocorre que aqui o governo de plantão, correta ou incorretamente (não é o foco destas vãs reflexões), usou instrumentos a seu dispor para retardar e abrandar os efeitos da mesma, certamente na esperança de que no auge de seu agravamento interno (dezembro 14 / janeiro de 15) já houvesse uma melhora significativa no quadro externo.

Para isso administrou preços administrados (ué, não é para isso que são administrados?), usou seus ativos financeiros e reservas em moeda estrangeira para influenciar o câmbio (mas que continuou livre e flutuante), baixou a taxa de juros e aumentou o acesso ao crédito (para consumo e produção), desonerou a folha de pagamento e reduziu a carga tributária setorial e média, confiando que haveria uma reação proporcional da atividade econômica.

Pois bem, mesmo excluindo-se os arautos da desgraça iminente, para o quais não haveria copa e teríamos aviões se chocando no ar, o que se viu foi que, aparentemente, esta política de retardamento dos efeitos da crise não surtiu plenamente o efeito desejado.

Isto se deu por dois motivos: o primeiro, pelo fato de que a superação da crise nos países centrais veio mais lenta do que o esperado por nossas autoridades (na Europa, de fato, nem aconteceu ainda), as agendas não bateram; e segundo por que os investimentos internos, com um certo grau de risco e produtividade, não aconteceram. Ao aumento da oferta de crédito, à exceção da gloriosa cadeia de construção civil, pouco ou nada se viu de investimento de risco produtivo. Paradoxalmente, os maiores investimentos vieram do próprio capital estrangeiro.

Pesquisa em P&D, novos produtos, modernização, competitividade, nada (vá lá, muito pouco)… Mesmo a cadeia da construção, operosa, investiu no suprimento do déficit, apenas produziu o que já estava vendido, surfando numa boa onda com baixíssimo risco se comparado aos seus congêneres do mundo capitalista desenvolvido.

Aí vieram as eleições e a receita usada pelo governo de então foi questionada. Fortemente questionada. A solução cobrada por metade dos eleitores é a solução de arrocho, contenção de despesas, corte de investimentos e fortalecimento da poupança. Foi nisso que votaram. Mesmo que esta receita não esteja dando certo nos países onde está sendo aplicada desde 2008. Mesmo que esta receita não se aplique adequadamente ao Brasil, que a conheceu nas décadas de 1980 e 1990 e pagou e paga caro por ela.

Mas, ok. Então tá. Um governo deve ser fruto da correlação de forças da vigente na nação. Houve empate nas eleições. O que fazer?

Decidiu o governo eleito reconhecer deficiências e adotar a agenda reclamada pela oposição, explicando para a sua metade mais um de eleitores que seria uma situação transitória, de fortalecimento do caixa, para então voltarmos ao leito habitual. Sensato… Recuo indevido para alguns, insuficiente para outros.

Tudo estaria normal, afinal não é tarefa mister de um governo agradar, mas sim governar, não fosse a já citada tendência nacional ao “então f…-se, está tudo uma m…., sou contra tudo isto que está aí, só no Brasil mesmo!” Claro, agravada pela incorrigível tendência conspiratória e golpista de pate de nossa corporação política e pela incontrolável cleptomania de outra parte.

Instala-se, pois, a crise política.

Um crise que se alastra muito mais rapidamente que a crise econômica, por ser esta uma crise de percepção, não de realidade, e por ser esta um espaço amorfo que contempla e abriga as mais díspares insatisfações.

Do truculento imbecil (redundância?) pedindo a volta de uma ditadura ao mais alienado transeunte. Do indignado cidadão que se revolta com o assalto aos cofres públicos ao integrante de uma minoria que se sente excluída do processo político-econômico-cultural. Todos estes integram a já, alvíssaras, não tão silenciosa maioria.

Até agora, não disse nada de novo.

O que me chama a atenção é entender o que se passa.

Neste caso, me parece que o Brasil começou a se inviabilizar politicamente no plebiscito do presidencialismo.

Para sepultar (?) a ditadura fizemos uma Constituição possível, obviamente marcada pelo período que a antecedeu, por todos os seus traumas, fraturas e feridas expostas. Por isto temos uma Constituição marcada pelos avanços nas liberdades individuais e de grupo, uma conquista histórica. Mas ela é também marcada por legítimos desejos de um país soberano e justo, e aí começam nossos problemas. Temos uma Constituição descentralizadora, democrática e parlamentarista. Como tal, uma Constituição que dá todo o protagonismo do jogo politico ao Parlamento, no nosso caso o Congresso Nacional.

Ou seja, a todo o protagonismo e poder dado ao Congresso, o único freio que se lhe impõe, no parlamentarismo, é que ele possa ser desfeito sem que isso signifique um Golpe de Estado. E, a uma coalizão que se desfaz, seja qual for o motivo, o destino é que o governo por ela sustentado caia, sem no entanto expor a risco ou ao ridículo as instituições maiores da Nação ou seja, o Supremo, a Presidência e o Próprio Congresso.

Naquele momento a implantação do parlamentarismo teria sido legítima e inconteste, e não teríamos parte dos problemas que temos hoje. Claro, certamente teríamos outros.

Porém optamos pelo presidencialismo, criando um novo desafio para a Nação: a convivência de uma carta parlamentarista, descentralizadora e democrática com um sistema político e de governo presidencialista, portanto centralizador e com forte tendência autoritária e clientelista, onde o protagonismo reside na figura do Presidente da República. Para os ônus e os bônus.

Saída para a situação? A mais simples possível, considerando-se este patrimônio cultural nacional chamado jeitinho brasileiro. Inventamos o presidencialismo de coalizão. Mais uma jabuticaba que oferecemos à humanidade.

A atual crise política, como todas as outras que a precederam, apenas demonstra que este presidencialismo de coalizão que adveio do plebiscito é insustentável. No momento em que a coalizão se desfaz o que acontece? Cai um presidente da República? Ou se mantém um presidente da República lançando mão de expedientes que se servem das tendências conspiratórias e cleptomaníacas já citadas?

É o que assistimos nestes 27 anos. Presidentes acuados, reféns, negociando 24 horas por dia e não apenas no horário comercial, como seria o desejável, republicano, à luz do dia, mas na calada da noite, em gabinetes e outros endereços inconfessos. Quanto custou a governabilidade no Brasil nestes anos todos? (leia aqui artigo sobre o tema)

Então, qual a saída?

Para mim é simples. Já que não podemos fechar o Congresso, o que seria uma monstruosidade em nosso regime presidencialista, a saída neste momento é apoiarmos fortemente a presidente, para que ela possa se contrapor às pressões dos partidos e dos grupos de interesse que se sentem, e estão, ameaçados pelas investigações e pela iminente ruptura do sistema político. Venho falando desde o dia seguinte às eleições: o maior patrimônio eleitoral de Dilma não são os seus 51,5% de votos, mas os 48,5% do Aécio.

Ou então apenas deixamos o barco correr e entregamos o poder, de vez, ao PMDB, que é o partido majoritário, como se faz no parlamentarismo. E com ele, a toda a canalha que lá está há tantos anos, no governo e na máquina, e ali continuará.

Fora isso, é ruptura da normalidade institucional e democrática. Golpe contra a Democracia, contra a Nação.

Mas, em ambos os casos, devemos mesmo é lutar por uma Constituinte livre, soberana e independente do Congresso, que defina nosso pacto para os próximos 25 ou 30 anos.

Lembrando: é sempre melhor chamar o povo que os quartéis.

Valter Caldana

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